“A fé nos consola de que nascemos para morrer”. Anotei a sentença logo depois de ouvi-la no imperdível O Auto da Compadecida 2, porque a achei interessante. É um tanto óbvia, mas a gente costuma viver como se fosse durar para sempre e não dá devida atenção à preciosidade dos dias, das horas, dos minutos. Dos encontros, dos afagos, dos olhares. Perdemos tempo estressados com assunto que sequer lembraremos daqui a duas semanas, passamos horas rolando a timeline de desconhecidos, ficamos no celular quando estamos na companhia física de outras pessoas. Banalizamos relações, cultivamos mágoas e nem nos damos conta.
Mas basta aparecer algo que nos sacuda — um filho, uma doença, uma paixão avassaladora, um acidente, uma separação, uma mudança de casa, um novo trabalho — para nos tirar da mesmice. E aí lembramos que não, não somos imortais. Pena que, às vezes, demore um bocadinho para notar.
Semana passada, tia Vera contou que recebeu um beijo do tio Mário, dizendo que ele logo voltaria para casa. Estava feliz e disposto. Só que ele não voltou mais: teve um infarto na companhia de amigos e não sobreviveu. Como assim? Recebi mensagem triste da minha mãe e não quis acreditar. Tio Mário era a pessoa que abraçava forte e, de repente, não vai mais fazer isso. E é assim que vou recordá-lo — rupturas mostram o valor dos pequenos gestos.
Na cerimônia de homenagem a ele, um seminarista proferiu um dos discursos mais bonitos que vi nesse contexto. Falou de fé, de ritos católicos (como voltar a Deus, desfrutar a vida eterna, etc.), da dor da perda, que tira a pessoa querida do nosso convívio e, obviamente, também versou sobre a finitude. Conseguiu, no entanto, trazer uma nova perspectiva.
Disse que só existe uma coisa maior do que a morte: o amor. Não importa se a pessoa que amamos não está aqui fisicamente, se não vamos ouvi-la ou tocá-la, se a risada não vai mais ser ouvida ou as mãos acariciadas... O sentimento que nos liga a ela não se encerra com a partida do plano físico.
Amamos mesmo sem poder ver e tocar. Amamos à distância, com o coração apertado. Amamos na ausência da presença e na presença da ausência. E seguimos amando, porque o amor é o legado que deixamos nos outros, aquele sorriso de canto de boca que causamos a sermos evocados.
Nos despedimos um pouco das pessoas a cada dia, é fato. Melhor quando conseguimos perceber isso logo, para ter tempo de valorizar e celebrar as trocas e os afetos que valem a pena.