Escrevi esse texto anos atrás, durante um curso de poesia. A proposta era criar algo a partir de uma obra a ser escolhida. Inspirei-me na crônica Eu sei, mas não devia, que Marina Colasanti publicou pela primeira vez no Jornal da Tarde, em 1972. Com a partida dessa escritora maravilhosa na terça-feira, que apostava e defendia o protagonismo feminino, decidi reproduzi-lo aqui.
Eu sei que a gente se acostuma, Marina. Mas não devia. Mesmo.
A gente se acostuma a contemplar a solidão, como se estivesse admirando uma tela de Edward Hopper pendurada no Art Institute of Chicago. Na Cidade dos Ventos, vai sozinho ao Navy Pier para encontrar desconhecidos e tentar desaparecer na multidão. E, sem ser visto, lembra que viver não é preciso — navegar talvez seja.
Quem vive longe do mar mal sabe a tranquilidade que caminhar sobre a areia e molhar os pés traz. Não encontra refúgio nas ondas que vão e vêm — sensação deliciosa provocada tanto pelo movimento, quanto pela sonoridade. Não chega nem a se encontrar direito.
Na inexatidão da vida, às vezes, renuncia-se à navegação, vive-se como um velho que pesca sozinho em seu barco na Gulf Stream, mesmo que fique 84 dias sem pegar um peixe. Assim, o utilitarismo do anzol, da linha e da isca se dissipa, bem como as abstrações do cotidiano. A gente se acostuma a não ler Hemingway, a não ler os clássicos, a não ler. Dá até para esquecer a noiva modelo de Adélia Prado, aquela que se levanta a qualquer hora da noite e ajuda o noivo pescador a escamar, abrir, retalhar e salgar o peixe. A gente se acostuma a não ter referências, a deixar tudo pela metade, a não se informar direito. A gente se acostuma com o peso do silêncio.
A gente se acostuma a olhar e não enxergar, a caminhar e não sentir os pés no chão. Marina, eu sei que não existe preparação prévia, nem póstuma para se viver. Na melhor das hipóteses, dá para recriar os dias seguintes e deixar marcas que poderão servir para algo. Ao menos é o que sugere o nome do meu deus na Cabala, profecia infinita e universos paralelos (não se pode prever o futuro, mas é possível reinventá-lo a cada instante). Gosto de pensar que essas pistas serão encontradas, talvez, pelos escafandristas do Chico, aqueles que virão explorar nossa casa, nosso quarto, nossas coisas, nossa alma. Aí reside uma epifania: sem alma, não dá para fazer a travessia. E sem atravessar, não se chega à terceira margem do rio. Não se chega a quase nenhum lugar, na real. Simples assim.
Não adianta se afobar: amores serão sempre amáveis e um poeta já escreveu isso. Vale mesmo é não ficar na superfície. Residindo nos rasos do mundo, afasta-se cada vez mais de quem se é. Essa falta de movimento abrevia a fluidez. E de tanto renunciar àquilo que flui, acaba-se não voltando mais.
Para retornar a si, só tem um jeito: é preciso aprender a se desacostumar.