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''Um professor nunca sabe onde sua influência termina" (Henry Brooks Adams)
A aposentadoria, que para alguns representará o fim de um longo ciclo marcado pela frustração do não reconhecimento, para quem ama dar aula deixará um vazio de perda sem reposição.
Como sempre, quando isso acontece recorremos à memória em busca do indispensável lenitivo que só as generosas lembranças podem resgatar. E então abrimos o precioso arquivo onde foram salvas as melhores reminiscências, e lá estava, intacta como se tivesse sido ontem, a minha primeira experiência em sala de aula.
O mestre Ivan Faria Correa, então responsável pela disciplina de Cirurgia Torácica da novel Faculdade Católica de Medicina, pareceu muito aliviado quando, ainda residente, aceitei como voluntário dar uma aula sobre pneumotórax.
O assunto era fácil, como convinha a um principiante, mas, deslumbrado com a novidade da tarefa, achei o máximo a preparação da aula e o aparente interesse dos alunos. Terminado o teste, corri para contar ao mestre que os alunos tinham gostado. Ele ouviu com um meio sorriso e tratou de amenizar meu surto euforizante: "Isso é frequente quando a plateia não entende nada do assunto".
Não sei o quanto consegui disfarçar a minha mágoa, mas talvez por um remorso improvável ou, sendo menos ingênuo, porque era importante para ele que eu não desistisse, o mestre foi assistir à aula seguinte sobre o tratamento do empiema, um assunto bem mais complicado.
No final, com o ar irônico que identifica os debochados inteligentes, ele fez o comentário mais ambíguo: "Parabéns. Te ouvindo me senti como se eu também não entendesse nada do assunto!".
Sociedade ainda não entendeu por onde se começa a construção de um país
O prazer de dar aula
Mas o importante é que o prazer de dar aula tinha me fisgado, e o passo seguinte foi a conquista da condição de Auxiliar de Ensino e o entusiasmo de preparar as aulas com os slides mais bonitos.
Acho que os alunos gostaram do meu entusiasmo porque, em 1979, com apenas quatro anos de magistério regular, fui agraciado com a condição de Paraninfo da turma. Lembro da euforia daquele inverno esperando que finalmente chegasse o verão, e eu pudesse saudar a turma que tinha quatro formandos mais velhos do que eu.
O tempo passou, a Faculdade Católica de Medicina mudou de nome, o mestre Ivan morreu sem que eu estivesse pronto (ainda tenho saudade dele), os seus quatro assistentes originais se aposentaram, o Felicetti ainda não tinha chegado, a Fundação Faculdade Federal de Ciências Médicas passou a fazer parte de uma Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre, os espaços vazios foram preenchidos por prédios elegantes, mas o prazer de ensinar ficou sempre igual.
Aulas inesquecíveis
Se tivesse que fazer uma resenha das aulas inesquecíveis, começaria com uma sobre transplante em que contei a história de uma fofa de oito aninhos, transplantada de pulmão, que ligava para o consultório, no meio da tarde, só pra dizer: "Tio, tô com saudade!".
Quando a aula terminou, uma aluna me disse, muito emocionada: "Professor, eu lhe prometo que vou ser uma médica tão boa, mas tão boa, que um dia meus pacientes haverão de ligar só pra dizer que estão com saudades minhas!".
Ou de um tímido, que quase nunca falava, e no fim de uma aula desgarrou-se da turma para, meio engasgado e trêmulo, me pedir: "Professor, eu preciso que o senhor me ajude a ser como o senhor".
A espontaneidade dessas confissões equivale a incontáveis pedidos de desculpas de uma sociedade que desvaloriza o professor, porque ainda não entendeu por onde se começa a construção de um país capaz de orgulhar a sua prole.
Serei sempre grato a esta escola que me deu, sem que eu pedisse, impagáveis lições de humanismo que favoreceram a minha maior descoberta: a de que o fascínio pelo magistério não brota do coração de quem ensina, mas sim do brilho do olho de quem aprende.