Aprovado no dia 17 de dezembro pela Câmara Municipal de Porto Alegre, um projeto de lei que libera construções na região conhecida como Ponta do Arado, no extremo sul da Capital, é mais um capítulo na disputa que envolve uma construtora, parte dos moradores, um grupo indígena e o Ministério Público Estadual (MP-RS).
A área da Fazenda Arado Velho foi adquirida pela Arado Empreendimentos em 2010. A construtora pretende erguer no local três condomínios com 450 lotes de 300 metros quadrados a 420 metros quadrados cada, cerca de 200 unidades em lotes abertos (sem muros cercando a área), além de chácaras para produção de alimentos e núcleos que misturam comércio, serviços e moradia.
Segundo a empresa, as praias do Guaíba ficarão liberadas para acesso público, com preservação da natureza no entorno. O haras e os prédios de ordenha seriam cercados por praças, e o casarão poderia virar um hotel. Outra área seria destinada a indústrias e empresas de tecnologia
O projeto que altera o regime urbanístico da Capital, permitindo que seja construído o empreendimento, recupera a redação do projeto de lei complementar 780/2015, que está judicializado. O texto 780/2015 foi aprovado sem a realização de audiência pública, etapa obrigatória em matérias que alterem o plano diretor, e teve os efeitos suspensos por liminar em 2017.
As promotorias do Meio Ambiente e da Ordem Urbanística de Porto Alegre afirmam que pretendem questionar a lei na Justiça se for sancionada pelo futuro prefeito Sebastião Melo. No entendimento das duas promotorias, como o novo projeto é igual ao suspenso, não deveria sequer ter ido a votação. Na retomada da pauta, foi realizada audiência pública virtual em 25 de novembro. O MP tentou impedir a realização do encontro, sem sucesso. A matéria foi aprovada posteriormente em plenário por 24 votos a 11. Procurado por GZH, Sebastião Melo disse que pretende submeter o projeto à secretaria de Urbanismo antes de decidir se irá sancioná-lo.
Para o advogado da Arado Empreendimentos, Ricardo Fortes, a postura do MP "causa estranheza". Ele argumenta que o que foi questionado no passado foi a ausência de audiência pública e não o teor do projeto:
– Jamais foi questionada qualquer questão de mérito da lei anterior. O que o Ministério Público queria, a Câmara foi lá e fez. O MP questionava que a audiência pública deveria se dar durante a tramitação na casa legislativa, e isso foi suprido.
Sendo a lei sancionada, a intenção da empresa é dar prosseguimento aos trâmites para a implantação do empreendimento na área. Segundo o advogado, não há planos de adaptação do projeto caso a norma seja barrada novamente. A empresa diz que as construções ficarão concentradas em um terço do terreno. Os outros dois terços serão mantidos como estão, preservando a paisagem natural.
Reintegração foi suspensa
Pelo Plano Diretor, a propriedade de 426 hectares está em uma área de "ocupação rarefeita", o que limita construções de grande porte – que podem aumentar o adensamento da região. Alterar as regras do plano, no entanto, não é o único obstáculo para viabilizar a intervenção no local.
Um grupo de moradores e ambientalistas contrários ao projeto tem questionado, nos últimos anos, possíveis impactos urbanísticos e ambientais da instalação do empreendimento. O assunto também é analisado pelas promotorias de Defesa do Meio Ambiente e de Habitação e Ordem Urbanística de Porto Alegre.
Contrária ao projeto, a advogada Michele Rodrigues, moradora do bairro Belém Novo, participou da audiência pública virtual realizada em novembro. Lamentou a aprovação da proposta, que, na sua avaliação, carece de um debate mais amplo com a sociedade.
– É complicado debater virtualmente assuntos tão complexos. Parece que estão tentando empurrar goela abaixo a visão do empreendedor. Acho que falta um debate franco sobre esse tema, que é muito denso. A população sai perdendo da forma como foi aprovada essa lei – disse a advogada, que espera que o Ministério Público intervenha caso a lei seja sancionada.
Outro capítulo tenso envolvendo a Ponta do Arado teve início em 2018, quando um grupo de indígenas se instalou na área, reivindicando direito histórico e religioso sobre ela. Em 2019, a Arado Empreendimentos conseguiu junto à Justiça liminar que determinava a reintegração de posse da área, mas a decisão foi suspensa menos de um mês depois pelo desembargador federal Rogerio Favreto, do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4).
Em fevereiro deste ano, o mesmo desembargador determinou que a União e a Fundação Nacional do Índio (Funai) façam estudos antropológicos complementares de identificação e delimitação de áreas de ocupação tradicional indígena na localidade. Com a chegada da pandemia de coronavírus, o processo foi suspenso, sem previsão de retomada.
Por e-mail, a Funai informou que aguarda pela retomada do processo para iniciar os estudos. Acrescentou, ainda, que, "em respeito às medidas sanitárias necessárias, os trabalhos de campo, essenciais para conclusão de processos demarcatórios, foram provisoriamente suspensos".