Símbolo de um passado de pujança da indústria naval do Rio Grande do Sul, o Estaleiro Mabilde desempenhou papel importante na construção e nos reparos de navios.
No pátio do terreno onde ficava situado, na Ilha da Pintada, no bairro Arquipélago, em Porto Alegre, ainda podem ser vistos navios e peças de embarcações, além de parte da antiga estrutura do espaço (leia mais abaixo sobre o que opera atualmente no local).
Moeda própria e time de futebol
Fundado em 1896 e instalado na Ilha da Pintada em 1912, o estaleiro chegou a ter uma vila de operários, inclusive com escola gratuita para os filhos dos trabalhadores, e até moeda própria. Depois, foi aberto um colégio estadual no lugar.
Os funcionários tinham canchas esportivas à disposição e criaram o Gremio Sportivo Mabilde, que incluía um time de futebol. As iniciais da equipe eram MFBC: Mabilde Foot-Ball Club.
Além disso, foi idealizado no estaleiro o Bloco das Borboletas, que produzia bailes durante o Carnaval. Eram comuns festas de confraternização entre patrões e funcionários. Havia serenatas e rodas de músicos no período noturno.
Os operários recebiam moradia, luz elétrica, água e carvão sem qualquer custo, além de gratificações por produção. Na procissão naval de Nossa Senhora dos Navegantes, no dia 2 de fevereiro, os barcos eram enfeitados com bandeiras e os tripulantes vestiam o que tinham de melhor.
Em registros antigos do Almanak Henault, em 1910, e da Revista Kodak, em 1919, o Estaleiro Mabilde era apresentado como construtor de rebocadores, chatas (embarcações de fundo plano e pequeno calado usadas na pesca, no transporte de cargas e na limpeza de açúcares), botes e barcos de ferro ou madeira.
Reconhecimento em premiações
O estaleiro importava ferro, motores e artigos navais. E teve o reconhecimento em premiações importantes realizadas há mais de um século.
Na Exposição Estadual de 1901, o estaleiro ganhou a medalha de ouro em construção naval. Dois anos depois, foi premiado com dinheiro pelo governo federal.
Na Exposição Internacional do Centenário da Independência de 1922, venceu a medalha de ouro após exibir a Lancha Independência, com um motor de avião adaptado.
Em publicação da Revista Mascara, de 1927, o estaleiro dizia ter agentes exclusivos dos motores a querosene Remington de Stampford e das tintas anticorrosivas Red Hand de Londres.
Nos tempos áureos, um dos primeiros navios com função frigorífica do Brasil teria sido construído em suas dependências, às margens do Guaíba. O estaleiro era, reconhecidamente, um gigante da indústria naval.
Fundador teve 19 filhos
O fundador do Estaleiro Mabilde, Emilio Carlos Oscar Mabilde, havia atuado antes como ferreiro no estaleiro do inglês Mac-Adam, na Praça da Harmonia (hoje Praça Brigadeiro Sampaio, no Centro de Porto Alegre). Na sequência, trabalhou como ajustador mecânico no estaleiro de José Becker, na Rua Voluntários da Pátria.
Em 19 de abril de 1892, foi para o mar no paquete (tipo de navio) Itapeva, passando depois para o Itaypú, ambos da Companhia Costeira. Prestou serviço ainda no paquete Rio Pardo do Lloyd Brasileiro, abandonando a vida marítima em 1896. Era membro da Associação dos Machinistas da Marinha Mercante do Rio Grande do Sul.
O almoxarifado era impecável. Uma noiva podia entrar e sair de vestido branco sem problema
ARLETTE YOLANDA MABILDE
Neta do fundador do antigo Estaleiro Mabilde
Casou-se, em 2 de março de 1878, com Maria José de Azevedo Fróes. O casal teve 19 filhos, mas apenas sete sobreviveram. A maioria morreu no parto ou nos dias subsequentes.
A história do Estaleiro Mabilde começou na Rua Andrade Neves, onde Emilio fundou, em 1896, a Officina Encyclopedica. Naquele espaço eram realizados consertos de máquinas, fogareiros e lampiões.
Apenas dois anos depois, com o aumento das demandas dos clientes, ganhou a denominação de estaleiro. Nessa ocasião, trocou de endereço e foi para a Rua Sete de Setembro, onde hoje fica a Casa de Cultura Mario Quintana.
Ida para a Ilha da Pintada
Em 1912, Emilio comprou o terreno na Ilha da Pintada, onde o estaleiro seria instalado. Foi preciso construir um dique para a atracação dos navios, e a terra retirada para essa obra foi aproveitada para aterrar o piso onde o estaleiro desenvolveu-se.
Os proprietários ainda instalaram uma usina para obter energia elétrica e uma caixa d'água para a vila de operários, que chegou a ter, conforme registros antigos, 160 funcionários em 1919.
Quando o governo do Rio Grande do Sul encomendou três batelões lameiros (embarcação não motorizada de fundo chato, com pequeno calado, idealizada para atuar perto das margens e em águas rasas de rios, lagos e lagoas), que seriam utilizados na construção do novo Cais do Porto de Porto Alegre, o que ocorreu entre 1920 e 1921, o estaleiro contaria com 450 operários.
A oficina mecânica seguiu na Rua Sete de Setembro, sendo posteriormente transferida para a Ilha da Pintada em 1913.
Neta do fundador lembra com orgulho do local
Aos 88 anos, Arlette Yolanda Mabilde conhece como poucos a história do Estaleiro Mabilde. Neta do fundador, ela nasceu na Ilha da Pintada, vivenciou a rotina do lugar e atualmente vive em outra região de Porto Alegre.
— Tenho o maior orgulho de dizer que no tempo que não havia CLT (Consolidação das Leis do Trabalho), o estaleiro tinha uma enfermaria equipada e muitíssimo organizada. O almoxarifado era impecável. Uma noiva podia entrar e sair de vestido branco sem problema — conta dona Arlette, citando a existência até de um convênio com a Santa Casa de Misericórdia.
Naqueles tempos, havia muitas cobras no terreno onde o estaleiro funcionava. Mas ninguém as matava, porque também existia uma parceria com o Instituto Butantan para capturar os répteis e enviá-los para a produção de soro antiveneno em São Paulo.
— Um tio meu foi mordido por uma (cobra) cruzeiro em 1941 e perdeu a visão. Ficou com sérios problemas e aos poucos recuperou parte (da visão) — relembra.
Inundação na enchente de 1941
Conforme o relato de dona Arlette, a enchente de 1941 destruiu diversos documentos do estaleiro, inclusive poemas e versos escritos por sua avó Maria José Fróes Mabilde, que até hoje dá nome a uma escola na Ilha da Pintada e também foi homenageada pela Escola de Samba Unidos do Pôr do Sol, em 2008, no desfile de Carnaval.
— O estaleiro ficou completamente debaixo d'água (na enchente de 1941). A água baixou e foi preciso tirar aquele barro todo, desmontar os equipamentos e máquinas vindas da França e da Alemanha, limpar, lavar e lubrificar. O estaleiro não estava tendo ganhos, mas todos os operários foram pagos — recorda.
Dona Arlette relata que era comum flagrar jacarés nas águas do Guaíba. E que os operários faziam charque de peixe seco, já que o período da desova era respeitado no estaleiro.
— Não é por ser da minha família, mas o Estaleiro Mabilde foi um modelo. Gostaria que hoje os trabalhadores fossem respeitados e considerados como eram os operários do estaleiro, participando de atividades sociais, festas, serenatas e saraus — compartilha, dizendo que mantém em sua posse pertences pessoais da avó.
A chegada da Segunda Guerra
Em sua avaliação, o que foi determinante para o declínio do estaleiro, além da enchente de 1941, foi o começo da Segunda Guerra Mundial (1939-1945):
— O estaleiro teve que construir tanques de guerra (leia mais abaixo). Foi difícil, porque o pessoal ficou trabalhando muito tempo e recebendo sem o estaleiro produzir nada em termos financeiros. Mas eles (proprietários) não deixavam os operários na mão.
E acrescenta, emocionada:
— Do ponto de vista social e político, eu acho que eles foram modelares. A dupla Emilio e Maria José (seus avós e fundadores) continua fazendo história.
Bisneto escreveu dissertação de mestrado
O bancário Adriano Ballejos Mabilde, 54, é bisneto do fundador do estaleiro. Passou grande parte da vida ouvindo histórias sobre o local, especialmente narradas pela avó Yolanda de Freitas Mabilde, que era nora do fundador.
Adriano inclusive escreveu acerca do estaleiro em sua dissertação de mestrado no Programa de Pós-Graduação em História da PUCRS.
— Meu pai (Jayme Adolpho de Freitas Mabilde, já falecido) nasceu na Ilha da Pintada dentro do pátio do estaleiro, onde ficava a casa deles — diz Adriano.
A maioria dos consertos dos navios das companhias costeiras da Capital eram realizados pelo estaleiro.
A travessia pelo Guaíba, partindo do Cais do Porto de Porto Alegre até o estaleiro na Ilha da Pintada, durava 15 minutos.
O estaleiro ficou completamente debaixo d'água (na enchente de 1941). A água baixou e foi preciso tirar aquele barro todo, desmontar os equipamentos e máquinas vindas da França e da Alemanha
ARLETTE YOLANDA MABILDE
Neta do fundador do antigo Estaleiro Mabilde
O transporte dos funcionários era efetuado por duas embarcações. A barca com capacidade para 300 pessoas sentadas era denominada Mabilde. Esta embarcação tinha dois apelidos: Pata Choca e Boi.
A segunda embarcação que levava funcionários era a lancha Norma, também de propriedade do estaleiro, com bancos em seu porão.
— A estrutura e alguns galpões de 1912 ainda se mantêm lá — menciona Adriano.
Como foi instalada a lei seca
Em sua dissertação, Adriano narra histórias curiosas envolvendo personagens do estaleiro e a relação deles com o álcool.
Um seria um homem negro, de cabelos grisalhos, alto e forte, que costumava dormir com o facão sob o travesseiro. Era um homem capaz de trabalhar por duas horas seguidas batendo com um malho (grande e pesado martelo usado para bater no ferro) de 20 quilos, algo que ninguém conseguia.
Dizia que havia degolado prisioneiros com a arma na Revolução Federalista (1893-1895). Quando bebia, tentavam tirar sua faca de brincadeira, o que o deixava furioso. O próprio patrão precisava ser chamado para acalmar o funcionário.
Em razão dessas situações, foi instituída a lei seca no estaleiro. Mas houve um funcionário que, inconformado com essa decisão, atravessava o Guaíba a nado para beber na região central de Porto Alegre. E depois voltava do mesmo modo. Detalhe: ele só tinha uma perna.
Envolvimento na Revolução de 1930
Às vésperas da Revolução de 1930, por solicitação do governo do Estado, o estaleiro construiu sobre os eixo de um trator um tanque de guerra chamado Parahyba. O veículo bélico era equipado com metralhadora e tinha cúpula giratória. Na ocasião, ainda foram criadas cápsulas para granadas de aviação.
Liderado por Getúlio Vargas, com o apoio de Minas Gerais, Rio Grande do Sul e Paraíba, o movimento armado derrubou o governo de Washington Luís e deu início à Era Vargas.
As enchentes de 1936 e 1941, o enfraquecimento do setor, a crise econômica e a ascensão do transporte rodoviário contribuíram para os anos subsequentes de dificuldades para as operações no local.
Dessa maneira, a família de proprietários vendeu o Estaleiro Mabilde em 1943 para o Consórcio Administrador das Empresas de Mineração (Cadem). Posteriormente, o local foi assumido pelo governo estadual, arrendado a diversos empresários e trocou de nome em várias ocasiões. Mas a função de estaleiro permaneceu e teve sequência.
Quem opera no espaço hoje?
A empresa Navegação Green Card opera no espaço desde 2004. A companhia, que tem como nome fantasia Estaleiro de Construções Navais da Ilha (ECNAVI), surgiu para consertar os barcos da Navegação Amandio Rocha, que tem rebocadores que encostam os navios no Cais do Porto da Capital. As duas empresas são do mesmo grupo.
Como a Navegação Amandio Rocha não tinha como consertar as próprias embarcações, adquiriu o espaço para isso e para reparar os de terceiros, função que ficou sob responsabilidade da Navegação Green Card.
O supervisor administrativo Flávio Dias, 68 anos, que tem vasta experiência na área da construção naval, diz que os únicos elementos originais a permanecer são os galpões e os maquinários estragados. Além disso, cita que no começo dos anos 1970, o próprio Estaleiro Só chegou a arrendar e realizar consertos no mesmo ponto.
— Vim para cá em 1974, e o Estaleiro Só já estava aqui. Já era tudo diferente. Os prédios dos fundos ainda funcionavam e hoje não funcionam mais. As carreiras (espécies de trilhos onde os navios ficam para conserto) não eram assim, eram todas de madeira. O Estaleiro Só as transformou. Nós tiramos as carreiras de madeira e colocamos de concreto — detalha ele, que atua há 40 anos nesse ofício.
Reportagem visitou o local
A reportagem de Zero Hora visitou o local no último 2 de abril. Três navios podiam ser vistos: um em conserto, outro atracado e um terceiro virado e inclinado dentro do Guaíba. Este foi trazido pela enchente de 2024 e o proprietário ainda não resgatou.
A marca da inundação de maio de 2024 também permanece visível nas paredes dos galpões e salas. Todos os muros caíram, mas já foram reconstruídos. Segundo o supervisor administrativo, ainda há o que fazer depois da cheia.
— A situação não está normal ainda. Estamos tentando recuperar o estaleiro, mas já consertando os nossos próprios barcos. Temos que consertar galpões, salas e tirar a areia do pátio — afirma.
Após a enchente, o estaleiro ficou temporariamente sem poder operar. As atividades estão sendo retomadas aos poucos. No dia da visita de Zero Hora, o navio Almirante Saldanha da Rocha, de 32 metros de comprimento e cerca de 300 toneladas, passava por reparos no casco. Serviços desse tipo levam cerca de 20 dias, e os funcionários aproveitam para pintar a parte consertada.
Entretanto, o motivo mais comum para as embarcações serem levadas até o estaleiro são as inspeções periódicas.
— O estaleiro é essencial para a indústria da navegação. Sem ele, a navegação não funciona. De cinco em cinco anos, é preciso fazer inspeção. Precisa puxar o barco e a capitania (órgão de autoridade marítima) fazer vistoria. Sem isso, a embarcação não consegue navegar — conclui Flávio Dias.