A fúria de João Gilberto Noll, que entre outras coisas nos deu justamente A Fúria do Corpo (1981), está de volta. Solidão Continental, seu último romance, é uma narrativa linear e profunda como alguns de seus melhores livros, em que a vazão dos sentidos se expressa num fluxo verbal quase incontinente. E obsceno. O protagonista, que talvez se chame João Bastos, é um típico exemplar do autor: solitário, com uma identidade difusa, em busca de remédio para aplacar seu tormento. A redenção, quem diria, estava bem debaixo de seu nariz.
Mais uma vez Noll ambienta sua narrativa em polos distantes - no caso de Solidão Continental, entre Chicago e Porto Alegre. Em comum, o vento frio que sopra nas esquinas, os lagos Michigan e Guaíba, um certo desconforto com a paisagem hostil. De cara, o personagem que procura retomar a existência após um hiato de 28 anos questiona se não é melhor se entregar novamente ao acaso, entre estranhos, "beber assim poderia me dar a chance de um náufrago desconhecido vir me abraçar e eu milagrosamente não soçobrar a esse abraço e chegar com ele até a praia e me despedir com altivez, para nunca mais". Mas ele segue na sua busca que não é mais do que a tentativa de se entender com o passado, em que uma velha paixão homoerótica o desviou do trajeto de uma existência convencional.
O romance de Noll é todo construído sobre fatos absurdos, quase surreais, que estão no limite entre verdade e devaneio. Fruto da solidão do personagem, a narrativa sugere estar ocorrendo apenas na imaginação do protagonista, que se depara com criaturas bizarras sempre pontuadas, entretanto, por conexões concretas com a realidade: uma sessão de Um Conto Chinês no cinema, uma passeata de funcionários públicos na Rua da Praia, uma incursão pelo Lami.
A obscenidade - ou, para alguns, a pornografia - de Solidão Continental é apenas circunstancial. Ela está evidentemente a serviço da dramaturgia, não soa gratuita, mas é, também evidentemente, chocante como toda obscenidade que se preze. Noll não é dado a eufemismos.
E, se nos últimos contos e romances juvenis, o autor havia suspendido um pouco a inquietação com as coisas do sexo, agora ele volta à forma - ainda mais radical - do também ótimo Acenos e Afagos que marcou sua estreia pela Record em 2008. Como diz o próprio alterego de João Gilberto Noll, "se o que doía no outro fosse tratado por mim a minha ferida se esquecia de si e eu me revigorava".
João Gilberto Noll autografa o romance nesse sábado, às 20h, na Praça de Autógrafos.