
Ao longo dos três anos mais críticos da pandemia de covid-19, a pneumologista Margareth Dalcolmo se concretizou como uma das principais vozes da ciência e do enfrentamento ao coronavírus no Brasil. Defensora do poder da sinceridade e da informação qualificada, a médica capixaba segue empenhada em traduzir termos técnicos e científicos para o entendimento da população.
Nesta entrevista, a pesquisadora da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e membro titular da Academia Nacional de Medicina (ANM) analisa o legado da crise sanitária para o sistema de saúde brasileiro, os motivos para a hesitação vacinal e os caminhos para reverter os baixos índices de vacinação. Também comenta sobre a possibilidade de outras pandemias e esclarece o que se sabe sobre o novo coronavírus descoberto recentemente na China.
— Não há dúvida de que pandemias poderão ocorrer ainda. Nós estamos verificando que o maior risco hoje é uma nova epidemia de influenza, pelo vírus H5N1, nascido nos Estados Unidos e que já contamina um número muito grande de animais domésticos — afirma Margareth.
Leia a entrevista após o vídeo:
Qual seria o risco de uma nova pandemia da mesma dimensão que tivemos com a covid em curto e médio prazo? Existe alguma forma de visualizar isso?
Sim. Uma das conquistas que a pandemia da covid-19 trouxe, inclusive, foi melhorar os mecanismos de precisão com os quais, através da vigilância genômica e da vigilância epidemiológica, se possa prever a emergência de novos surtos, epidemias ou mesmo pandemias. Não há dúvida de que pandemias poderão ocorrer ainda. Nós estamos verificando que o maior risco hoje é uma nova epidemia de influenza, pelo vírus H5N1, nascido nos Estados Unidos e que já contamina um número muito grande de animais domésticos, como as vacas leiteiras nas fazendas naquele país. Portanto, os laticínios que trabalham com esse leite ou mesmo com o corte desses animais se transformaram no maior celeiro de contaminação.
Hoje, nós temos dois problemas em relação a isso. Primeiro, não há dúvida de que já há transmissão desse vírus, que é eliminado pelo leite das vacas e já contaminou animais domésticos e pessoas. A influenza é de origem uma gripe aviária, veio dos pássaros, contaminou os animais mamíferos e os animais domésticos, como os gatos. Também há aproximadamente 80 casos em humanos que já houve transmissão.
O que não aconteceu até o momento foi uma transmissão de uma pessoa para outra. E o vírus tem potencial para que isso ocorra, é um vírus influenza. Ou seja, não há dúvida de que o vírus H5N1 tem potencial pandêmico.
O que a senhora tem a dizer sobre o novo coronavírus descoberto na China?
Por enquanto, só foi detectada a presença desse vírus nos morcegos, que são animais muito especiais, de temperatura muito alta, que albergam uma população viral enorme. E, por hábitos alimentares muito característicos daquelas culturas, o vírus é capaz potencialmente de se transmitir, como foi o Sars-Cov-2, o Sars-Cov-1 e o Mers-Cov, para outros animais, como pequeninos mamíferos roedores, como o pangolim, que é considerado o maior responsável pela transmissão do coronavírus entre o mundo animal e o mundo humano.
Nós estamos verificando que o maior risco hoje é uma nova epidemia de influenza, pelo vírus H5N1, nascido nos Estados Unidos e que já contamina um número muito grande de animais domésticos
Já se sabe se esse novo coronavírus teria o mesmo potencial de contaminação do Sars-Cov-2?
É cedo para dizer porque não houve transmissão nem mesmo para outros animais. Esse vírus só foi, até o momento, descoberto em população de morcegos, que são grupos monitorados. Mas tem capacidade, sim, porque ele, inclusive, usa o mesmo mecanismo enzimático de se acoplar à célula humana que o Sars-Cov-2. Ele tem a chamada enzima inibidora da angiotensina (ECA-2), como nós chamamos, que é a mesma enzima, o mesmo mecanismo que seria usado para fixar o vírus na célula humana. Isso dá a ele, sem dúvida, esse potencial, mas estamos monitorando. Até o momento, nem em outros animais foi detectado ainda algum caso, mas o potencial existe, sim.
Qual o maior legado que a pandemia deixou para o sistema de saúde brasileiro? A senhora considera que “saímos” melhores dessa crise sanitária?
Os grupos de pesquisa criaram muitas redes de cooperação, o que foi uma coisa extremamente positiva, inclusive no Brasil. O Brasil, a despeito de todas as dificuldades que nós passamos, é o 10º país em publicações científicas sobre a covid-19, o que é bastante coisa.
Entendemos também que era preciso que os médicos, os pesquisadores, os virologistas e todo mundo que trabalhava nessa área saísse dos seus casulos, digamos assim, e viessem a público para dar informação. E é preciso verificar que a comunidade científica brasileira resistiu a várias dificuldades, sendo a primeira delas uma retórica oficial e governamental, que sempre foi extremamente nociva, inclusive ao nosso trabalho.
Conseguimos superar essa retórica?
Nós passamos a desenvolver o que eu chamaria de uma certa expertise de trabalhar sem nos deixarmos contaminar por aquela retórica tão nociva, inclusive oficial, e fazer as nossas recomendações. O Brasil teve esse paradoxo e foi um celeiro de desenvolvimento de grandes estudos de vacina: desenvolveu estudos de fase 3 das vacinas da Pfizer, da Janssen e da Coronavac. Ou seja, foi um local onde, apesar das dificuldades, se desenvolveram grandes trabalhos. Com isso, estou reconhecendo que os grupos brasileiros aprenderam muita coisa, sem dúvida. Mas posso dizer que erramos — eu particularmente, porque escrevi isso — no sentido de imaginar que, como todas as epidemias em geral na história do homem trouxeram algum fenômeno positivo, a covid-19 também poderia gerá-lo. E, na verdade, isso não aconteceu.
A senhora acredita que o Brasil demorou para ter uma resposta adequada à pandemia?
Acho que nós fomos vítimas dessa desinformação que eu considero muito maléfica, desde o início. A retórica oficial governamental, que era contra tudo, dizia que não precisava de lockdown, que o importante era manter a economia. E nós sabíamos que o Brasil tinha duas armas para enfrentar a tragédia que estava chegando: o SUS — a despeito de todo o seu combalimento e necessidade de investimento, de organização — e o isolamento social.
Nós sabíamos que precisávamos proteger as pessoas e a melhor maneira de proteger as pessoas era confiná-las em casa. Mas esse tipo de medida já desde o início foi muito contestado. E nós temos o maior exemplo pedagógico no Brasil, que foi o que aconteceu em Manaus.
Manaus foi o primeiro polo epidêmico da covid-19 no Brasil. No fim de abril, houve aquela mortandade. Morriam 30 pessoas por dia, passou a morrer 180, e nada foi feito. Não foi feito lockdown, as escolas não fecharam, enfim, foi uma coisa confusa. E o que aconteceu? Sete meses depois, a nova cepa foi descoberta em Manaus, com uma disseminação enorme e foi aquela tragédia que nós vimos, com falta de oxigênio e pessoas recebendo de maneira totalmente equivocada cloroquina.
Mas posso dizer que erramos — eu particularmente, porque escrevi isso — no sentido de imaginar que, como todas as epidemias em geral na história do homem trouxeram algum fenômeno positivo, a covid-19 também poderia gerá-lo. E, na verdade, isso não aconteceu.
Houve exemplos que mostram que as medidas foram disseminadas de forma confusa e havia já, desde esse momento, gente dizendo que não precisava fazer isolamento social, que tinha que ter uma vida normal e usando conceitos totalmente errados de que nós teríamos que adquirir imunidade de rebanho, como nós sabemos que esse termo inclusive é equívoco. Imunidade de rebanho se adquire com vacina e não com transmissão de doença. Não era a transmissão de uma doença que matava, e que matava muito, que ia prover imunidade de rebanho. A imunidade de rebanho é um termo da vacinologia. Acho que essa confusão de conceitos foi muito maléfica para nós.
Na sua visão, o que motivou a hesitação vacinal no Brasil, apesar da vacinação ter sido fundamental para a redução das internações e mortes pela doença?
A primeira observação que cabe é que os fenômenos de anti-vax são completamente novos no Brasil. Foi uma contaminação nova que entrou na cultura brasileira, porque tínhamos uma adesão ao processo de vacinação muito grande desde o nascimento do Programa Nacional de Imunizações (PNI).
A população tem essa consciência, mas foi contaminada de maneira extremamente maliciosa e maléfica, inclusive por grupos de médicos que continuam colocando em questão o tempo em que as plataformas vacinais geraram as vacinas para a covid-19. Isso é uma maneira de passar a desinformação ao invés de orientar a população de que, na verdade, as vacinas para a covid-19 eram todas plataformas que já existiam. Elas não foram criadas. Elas tinham sido testadas para outras doenças e não funcionaram, mas funcionaram muito bem para a covid-19.
As pessoas passaram a ter medo. E a vacina da covid-19 passou a ter uma adesão menor às doses de reforços que foram feitos já nos últimos dois anos, como houve, por exemplo, com a própria vacina da dengue agora.
O mal, às vezes, consegue imperar muito rápido, e depois leva um tempo mais longo para ser desmistificado ou para se resgatar uma verdade e ela ser incorporada pelo senso comum, pelo próprio inconsciente coletivo de uma população.
E quais seriam os caminhos para reverter essa situação e os baixos índices de vacinação?
Como isso seria um resgate de algo que já era muito incorporado na nossa população, acho que está ligado a uma qualidade da comunicação. É preciso que nós, em primeiro lugar, digamos a verdade: mostrar os casos, a diferença que faz, os resultados positivos, como a nova eliminação do sarampo, a mudança que houve recentemente na questão da vacinação contra a poliomielite, onde o Brasil adota a mesma conduta dos países desenvolvidos, deixando de usar as gotinhas e passando a usar agora a vacina injetável, o controle de doença, e como nós conseguimos praticamente erradicar a poliomielite.
Acho que esse tipo de informação tem que ser cansativa e exaustivamente repetida por várias vozes que demonstram confiança para a população. Quando eu venho a público falar de um assunto, por exemplo, eu tenho tentado explicar de uma maneira que as pessoas entendam, porque as pessoas precisam entender, como precisam entender outros conceitos de questões que têm impacto sobre a saúde, como o saneamento básico.
Além disso, há um outro fator que eu acho importante e que o Ministério da Saúde tem feito, que é a descentralização das modalidades de vacinação. São usadas modalidades específicas para microrregiões. O discurso, a maneira de fazer, não é necessariamente igual em uma grande cidade, como São Paulo, Rio de Janeiro e Porto Alegre, e em regiões menores. É diferente. Essa microrregionalização que tem sido usada pelo Programa Nacional de Imunizações me parece bastante correta e acho que isso será capaz de modificar esse cenário.
E nós ainda temos mais de cem mortes por covid-19 a cada semana no Brasil, basicamente em pessoas não vacinadas. Então, isso prova que o vírus continua circulando
Como a senhora apontou, a ciência foi muito questionada durante a pandemia. A senhora acredita que isso modificou a relação entre a população e os pesquisadores?
Acho que houve e há ainda essa deliberada, infelizmente, inclusive através de grupos de médicos. E eu considero um fenômeno muito triste que médicos se disponham a dizer ou a disseminar um temor para as pessoas, porque é muito deletério. Mas acho que aumentou a confiança. Eu somei durante três anos quase 700 entrevistas na imprensa, então, foram muitas vezes em que eu me manifestei, e cada vez que eu estou em um lugar alguém vem falar comigo e me agradecer.
Acho que, de modo geral, nós tivemos um aumento de confiança na ciência, apesar desse esforço pelo outro lado de colocar em xeque de maneira muito maliciosa tudo aquilo que nós temos sido capazes de fazer.
E como poderíamos nos preparar para possíveis futuras pandemias?
Nós não podemos mais ser atingidos por uma próxima epidemia tão de calça curta, como fomos no início dessa. Nós temos que estar preparado e quando eu digo estar preparado, estou dizendo várias coisas. Primeiro, ter um grupo de inteligência na saúde que possa ser acionado a qualquer momento para determinar as ações imediatas, a médio e a longo prazos. Isso é uma coisa fundamental.
Segundo, ter contingência, que significa ter estoque de produtos. Houve uma época em que não havia máscaras para comprar. O Brasil é totalmente dependente da importação de produtos, mesmo os mais singelos, como vidro para envasar vacina, máscaras e equipamentos. Então, o complexo industrial de saúde brasileiro precisa estar preparado com isso que estou chamando de contingência: estocagem, gente da área administrativa que seja capaz de tomar uma medida de controle e as medidas sanitárias mais imediatas, dependendo de que tipo de patógeno for o responsável.
Mas nós sabemos que, hoje, o grande risco é de transmissão epidêmica por vírus de transmissão respiratória. Então, sem dúvida nenhuma, essas medidas são muito importantes.
E no cenário atual, como a covid-19 deve ser encarada?
O vírus sars-cov-2 não vai mais desaparecer das nossas vidas. A vacinação será uma vacinação regular no nosso calendário. Hoje, há vários grupos de pesquisa e casas farmacêuticas trabalhando na possibilidade de formular uma vacina conjunta de influenza e covid-19 para ser aplicada anualmente, mas isso ainda não é uma realidade palpável.
E nós ainda temos mais de cem mortes por covid-19 a cada semana no Brasil, basicamente em pessoas não vacinadas. Então, isso prova que o vírus continua circulando. A maior parte dos casos não é grave porque as pessoas estão vacinadas. Sem dúvida, acho que é importante essa consciência de que nós precisaremos nos vacinar com regularidade daqui para frente, como precisaremos nos vacinar para outros vírus ou para outras doenças bacterianas, sobretudo aquelas que vão proteger as nossas populações mais idosas.