
Silêncio. Os aplausos cessaram. As cortinas se fecharam. O projetor do cinema foi desligado. O palco ficou vazio, e as cadeiras, desocupadas.
Quando a pandemia de covid-19 foi decretada pela Organização Mundial de Saúde (OMS), em 11 de março de 2020, havia ainda uma esperança de que a situação durasse um par de semanas. Espetáculos eram adiados para o mês seguinte.
Mas não foi assim. A situação se alongava, proporcionalmente à angústia sentida pelos profissionais da cultura. Foi necessário se reinventar. Para muitos artistas, a solução seria a presença digital.
Lives com estrutura de megashows
Foi nesse período que as lives viraram alternativa, com a finalidade de aproximar artistas do público e arrecadar doações. Ou render alguns trocados para os próprios realizadores.
Tudo era um tanto caseiro no início, mas os padrões mudaram com a live do cantor sertanejo Gusttavo Lima, no dia 28 de março de 2020, quando deu início às apresentações com estrutura digna de DVD ao vivo: cenário, iluminação e equipe de filmagem.
Do pequeno ao grande artista, seja de música ou não, a maioria abraçou o formato. Nesse período, lives de nomes como Marília Mendonça, Jorge & Mateus, e Sandy & Junior reuniram milhões de pessoas — de suas casas. Muitas vezes, as apresentações se estendiam por horas e horas.

Entre os artistas gaúchos, a dupla César Oliveira & Rogério Melo promoveu lives beneficentes. Ainda hoje, quando os dois viajam pelo país, alguém os aborda lembrando aquelas apresentações.
— Há quem ainda agradeça: "Olha, acompanhei muito vocês pelas lives". Era uma maneira de interagir com o público, mas também de nos solidarizar, de cooperar com a saúde mental das pessoas, podendo levar alegria. Porém, pode ter certeza que foi um momento dos mais difíceis para todos nós — conta César.
Quem teve um retorno parecido foi o humorista Cris Pereira. Para ele, a realização de lives era uma oportunidade de respiro.
— Teve gente que me falou depois: "Cris, a minha pandemia não foi pior porque acompanhei teu trabalho" — relata o comediante. — Me adaptei a lives e a tudo que pudesse fazer, mas sem uma remuneração. Era mais para manter o conteúdo e permanecer vivo para o meu público.
Aprendizado audiovisual
Ao mesmo tempo, músicos passaram a gravar discos a distância. Foi assim com Frank Jorge e Kassin com Nunca Fomos Tão Lindos, Marisa Monte com Portas, Sepultura com SepulQuarta, Marcelo D2 com Assim Tocam os Meus Tambores, entre outros.
No campo dos espetáculos, o teatro online surgiu como uma possibilidade. Camila Bauer, diretora do coletivo Projeto Gompa e professora do Departamento de Arte Dramática da UFRGS (DAD), dirigiu quatro montagens no formato: A Vó da Menina (ao lado de Bruno Gularte Barreto, estreada no projeto Ponto de Teatro do Instituto Ling), A Última Negra (com Silvana Rodrigues), Derrota (com Liane Venturella) e A Mãe da Mãe da Menina. Ela lembra ter estranhado o método no começo, pois nunca havia trabalhado com audiovisual.
— Sei que muita gente vê um cruzamento imenso, mas é um campo bem distante do teatro para mim. Foi toda uma pesquisa para me aproximar dessa relação com a câmera, um aprendizado muito grande no período da pandemia — recorda Camila.

Muitos eventos tradicionais por reunirem pessoas pela cultura foram realizados virtualmente no período, como Feira do Livro de Porto Alegre, Bienal do Mercosul, Fantaspoa, Fronteiras do Pensamento, Porto Alegre em Cena e Porto Verão Alegre.
Até as festas eram virtuais: com as aglomerações proibidas, a possibilidade de reunir pessoas a distância passou a ser via aplicativos de videoconferência, com o público ouvindo músicas escolhidas por um DJ, mas dançando em casa.
Novelas reprisadas
Houve também quem se reunisse virtualmente para jogar Among Us. O game alcançou enorme popularidade tendo foco na análise das pistas e na interação entre os personagens, como uma brincadeira de detetive que estimulava tretas, dissimulações e falsos testemunhos — ou seja, ideal para esquecer o mundo fora de casa.
Outra tendência do período foram os desafios diários de Wordle e Termo, que estimulavam o usuário a adivinhar uma palavra com até cinco letras. Era uma pausa no dia para aliviar a cabeça.
A quarentena afetou também as atrações televisivas. Sem a possibilidade de gravar novos capítulos, a TV Globo reprisou novelas como Fina Estampa, Novo Mundo e Totalmente Demais.
Quando as gravações do folhetim Salve-se Quem Puder foram retomadas, em agosto de 2020, havia uma série de protocolos a serem seguidos. Ficou famosa a cena de beijo entre os atores Felipe Simas e Juliana Paiva, em que os dois gravaram os movimentos de cabeça na frente de um acrílico (que foi removido na edição), simulando a troca de afeto.
Além das novelas, muitos programas de TV eram gravados diretamente da casa dos apresentadores, como Papo de Segunda e Saia Justa, do GNT. Foi nesse período, aliás, que as estantes de livros como cenário de fundo chamavam a atenção — especialmente para conhecer o gosto de leitura dos envolvidos.

Crescimento do streaming
Os cinemas fecharam — alguns para sempre. No Rio Grande do Sul, salas históricas como Cine Guion, de Porto Alegre; Cine Dunas, de Rio Grande; e Cine Cisne, em Santo Ângelo, deixaram de operar. Por outro lado, os serviços de streaming dispararam em uso.
Conforme informações da Motion Pictures Association (MPA), as assinaturas de plataformas de streaming cresceram 26% no mundo em 2020, indicando 232 milhões de novas contas criadas em relação ao ano anterior. Já uma pesquisa da Kantar IBOPE Media apontou que 58% dos usuários de internet no Brasil afirmaram ter consumido mais vídeo e TV online pelo streaming pago durante o isolamento social.
Diante desse cenário, empresas como Disney e Warner pretendiam priorizar os lançamentos de blockbusters em suas plataformas de streaming em detrimento das salas de exibição, o que animou discussões sobre um possível "fim do cinema". Contudo, o plano perdeu força antes do fim da pandemia.
A volta (temporária) do drive-in

Uma alternativa inicial para ver filmes em comunhão foi recorrer ao antigo drive-in, com cada espectador e acompanhantes isolados no automóvel. A ideia evoluiria para apresentações musicais, espetáculos e até shows de comédia, o que poderia ser estranhamente desafiador para os humoristas.
Afinal, o comediante não ouvia a risada da plateia, apenas visualizava os sinais de luzes dos faróis dos carros. As palmas eram as buzinas.
— Imagina trabalhar seu cérebro para isso — diz Cris Pereira. — Quando você grava um vídeo, já sabe que não vai ter a resposta imediata do público. É outro formato de entrega. Mas o espetáculo no palco é feito para se ter o retorno das pessoas. Acabava sendo uma situação muito fria, porque eu largava a piada e não escutava nada. Não sabia se havia acertado ou não.
Ao mesmo tempo, o humorista se questionava: será que voltaria a pisar em um palco real? Será que a vida se resumiria a isso, somente com trabalho online e obtendo o máximo de contato com apresentação para carros?
Protocolos para o público

Felizmente, tudo voltaria ao normal. Quer dizer, antes haveria um "novo normal". Nos períodos em que a pandemia amenizou ou logo após a vacinação ser iniciada, em 2021, as atividades culturais foram gradualmente retomadas, mas seguindo protocolos.
Até o primeiro trimestre de 2022, os estabelecimentos abriam e depois fechavam. Novas datas de shows eram anunciadas e depois reagendadas.
Os protocolos variavam conforme o avanço ou a desaceleração do contágio. Basicamente, incluíam uso de máscara, medição de temperatura na entrada, distanciamento mínimo entre frequentadores, disponibilização de álcool gel, limitação de público, controle da circulação, ventilação do local, apresentação de comprovante de vacina, entre outras medidas.
No cinema, havia uma intervalo maior entre uma sessão e outra para evitar aglomeração e permitir higienização. Aliás, nesse período de reabertura, os lançamentos eram pouco expressivos, apesar de haver uma ou outra grande produção — como Tenet ou Mulher-Maravilha 1984. Os exibidores ansiavam por opções atrativas, enquanto os estúdios seguravam os filmes para uma ocasião mais adequada (ou disponibilizavam direto no streaming).
Show do Maroon 5 marcou reabertura

Porém, em cada apresentação ou sessão, um sentimento de insegurança pairava no ar. As UTIs ainda estavam lotadas, temia-se o contágio ou ainda contagiar uma pessoa próxima.
Com o avanço da vacinação e a diminuição de casos, logo a movimentação deixou de ser tímida nos eventos culturais. Museus, teatros, cinemas e casas de show voltaram a receber pessoas.
Muitos eventos represados inflaram a agenda cultural pelo menos até 2023. Em Porto Alegre, o primeiro megashow realizado para uma multidão após o início da vacinação foi do Maroon 5, em 6 de abril de 2022. A banda americana se apresentou para 18 mil pessoas na Fiergs, já sem protocolos.
Os novos formatos perduraram?
Algumas soluções e formatos encontrados na pandemia não se estabeleceram na rotina de artistas e produtores culturais. Por exemplo, o drive-in não teve continuidade após 2020.
As lives, que eram aguardadas com ansiedade durante o confinamento, ganharam um novo significado. Hoje, raramente são utilizadas para apresentações musicais, sendo encaradas como uma ferramenta de conversa e aproximação com os fãs.
O teatro online, conforme Camila, não se firmou enquanto formato estético:
— A natureza do teatro é a presença mesmo. Estamos aqui juntos, e algo vai acontecer. O virtual foi um tipo possível de emergência, mas que não se estabeleceu.
O legado do meio digital
A professora do curso de Produção e Política Cultural da Universidade Federal do Pampa (Unipampa) Gleise Oliveira frisa que a pandemia impactou a cultura sob diversos aspectos. Ela destaca que o período acelerou a adesão aos meios de sociabilidade digital — em especial, aplicativos de comunicação.
— As alternativas criativas para driblar a quarentena e permitir uma conexão com a produção cultural foram, a meu ver, inovações que passaram a conviver com as outras formas de acesso à cultura — avalia Gleise. — Entretanto, por mais que haja facilidade em acessar produtos audiovisuais pelas plataformas digitais, nenhuma dessas tecnologias fez sucumbir a experiência de estar em uma sala de cinema, para ficar em um exemplo.
Para a produtora cultural Silvia Abreu, os artistas passaram a se reunir mais para encontrar soluções coletivas na pandemia. Ela recorda que a classe artística se uniu no Brasil inteiro, em grupos de diferentes Estados, buscando garantir alguma sustentabilidade.
Há um tempo, fazíamos um show que acontecia naquele momento. Hoje, quando você elabora um projeto, já pensa em gravá-lo ou transmiti-lo
SILVIA ABREU
Produtora cultural
Ao mesmo tempo, Silvia aponta que a pandemia impulsionou uma quebra da barreira geográfica. Exemplifica que não há mais necessidade de reunião presencial e que essa nova forma de se relacionar trouxe mais agilidade.
— Antes, éramos exclusivamente de uma cidade ou região, mas agora podemos acessar qualquer pessoa no mundo — diz Silvia. — Há um tempo, fazíamos um show que acontecia naquele momento. Hoje, quando você elabora um projeto, já pensa em gravá-lo ou transmiti-lo. Pode chegar a outros públicos.
Jader Rosa, superintendente do Itaú Cultural, destaca que o período pandêmico contribuiu para a expansão e o aprimoramento das formas de produção de arte. Para ele, os novos artistas já surgem com a mentalidade digital. Jader realça a capacidade de gerar escala para projetos culturais, atingindo públicos de diferentes localidades.
— Participei de uma mesa sobre teatro online com público por videochamada. Havia um debate sobre se esse formato podia ou não ser considerado teatro. Então, uma pessoa de Roraima disse: "Isso (teatro presencial) nunca havia chegado aqui. Se é o meu primeiro contato, então é teatro". É disso que se trata — conclui Jader.
Renda dos profissionais caiu de 50% a 100%
Do ponto de vista da renda, a pandemia foi um período de trevas para quem trabalha com arte e depende do contato com o público. Para ilustrar o dano, um estudo realizado em parceria entre a Universidade de São Paulo (USP), o Sesc, a Unesco e as secretarias de Cultura de todos os Estados do Brasil identificou que metade dos cinco milhões de trabalhadores da área viram o faturamento cair de 50% a 100% durante a pandemia.
Sem trabalho, muitos artistas precisaram se desdobrar do jeito que podiam. O pianista Luciano Leães, por exemplo, realizava lives em que passava um "chapéu virtual" para arrecadar doações e criou uma campanha de financiamento coletivo continuado na plataforma Catarse — com prêmios como lives exclusivas.
Aliás, não faltaram campanhas e financiamentos coletivos. No Rio Grande do Sul, um dos movimentos era o Todos pela Graxa, realizado em parceria com o Sarau dos Artistas, que visava a auxiliar a classe de trabalhadores formada por técnicos de som, luz e vídeo — carinhosamente chamada de "graxa" no meio musical.

Recorrendo a outra profissão
Não foram poucos aqueles que precisaram recorrer a outra profissão, ainda mais quem estava trabalhando na consolidação da carreira. O ator Tiago Martinelli Nogueira, de Montenegro, cursava Licenciatura em Teatro na Universidade Estadual do Rio Grande do Sul (UERGS). Já integrava o grupo teatral Atrito, de Porto Alegre, e acumulava alguns trabalhos. Sem poder trabalhar em sua área, arranjou uma vaga de auxiliar de farmácia, na qual ficou até dezembro de 2022.
— Como já tinha experiência, tive que ir para o ramo que estava aberto e contratando — narra Martinelli. — Os meus pais, durante a pandemia, não tinham trabalho. Os dois tinham o transporte escolar, mas não havia aulas. Precisava ajudá-los.
Superada a pandemia, Martinelli arranjou um trabalho de assessor de imprensa e, de lá para cá, está focado em uma peça de sua autoria, Eclipse, e em um curta-metragem. Ele cita que antes, durante o momento delicado, o edital da Lei Aldir Blanc pôde ajudá-lo.
O papel dos editais públicos
Seja na esfera municipal, estadual ou federal, surgiram editais na pandemia para tentar auxiliar os profissionais da cultura. Uma dessas iniciativas foi o FAC Digital, da Secretaria de Estado da Cultura do RS (Sedac), que investiu R$ 3 milhões para a geração de renda e conteúdo digital durante a pandemia.
O valor foi dividido em 1.940 projetos, cabendo R$ 1,5 mil para cada. O objetivo era contemplar iniciativas online que gerassem conteúdo.
Por parte da União, a Lei Aldir Blanc entrou em vigor em 29 de junho de 2020. Destinada aos Estados, municípios e Distrito Federal, a legislação previa a manutenção de espaços culturais, pagamento de três parcelas de renda emergencial (R$ 600) a trabalhadores do setor que tiveram suas atividades interrompidas, além de instrumentos como editais e chamadas públicas.
Se pensarmos que muitos trabalhadores da cultura atuam de forma quase invisível, é evidente que uma parte significativa deles não foi alcançada por essa política (de editais)
GLEISE OLIVEIRA
Professora do curso de Produção e Política Cultural da Unipampa
Em 2022, foi aprovada a Lei Paulo Gustavo, prevendo o repasse de R$ 3,8 bilhões a Estados, municípios e Distrito Federal, do Fundo Nacional da Cultura (FNC), para aplicação em ações emergenciais voltadas ao setor por meio de editais, chamamentos públicos, prêmios ou outras formas de seleção pública.
No entanto, Gleise Oliveira, da Unipampa, avalia que o auxílio ao setor cultural chegou de forma tardia e encontrou forte resistência por parte do Executivo federal. Para ela, não é exagero afirmar que o governo "sufocou o setor".
Por outro lado, considera que os editais destinados à cultura foram importantes, sobretudo por serem parte de uma conquista do próprio setor, que se mobilizou e sensibilizou o Legislativo sobre a necessidade desse suporte financeiro. No entanto, a professora sublinha que os editais não foram totalmente efetivos.
— Se pensarmos que muitos trabalhadores da cultura atuam de forma quase invisível, é evidente que uma parte significativa deles não foi alcançada por essa política — diz Gleise.
Cultura para a saúde mental
A produtora cultural Silvia Abreu argumenta que os editais chamaram atenção para a importância da atividade artística. Não só como um vetor de desenvolvimento, mas como um fator primordial para a saúde mental:
— Se não fossem os filmes, os livros, as peças de teatro, toda aquela produção que emergiu através do digital, não teríamos suportado ficar em casa.
Entretanto, Silvia alerta: não se pode só viver de edital, tampouco é a única forma de se garantir a permanência da cultura. É necessário formar público, garantir que a cultura esteja nas escolas e que se combata certo preconceito com a arte.
A produtora, por fim, lembra que nem todo mundo está incluído digitalmente:
— Essas desigualdades econômicas impedem que grande parte da população brasileira tenha acesso a essas novas formas de produção e distribuição. É preciso que as formas de acesso a essas novas tecnologias sejam garantidas para a população.