
Wuhan, dezembro de 2019. Considerada o epicentro da pandemia de covid-19, a cidade chinesa registrou o primeiro surto, ligado ao mercado de frutos do mar e vida selvagem de Huanan. A principal hipótese para a origem do vírus é a de que a interação entre humanos e animais resultou no Sars-CoV-2 — um fenômeno já observado em outros coronavírus. Não há, entretanto, um consenso na comunidade científica.
Mais de cinco anos depois, a hipótese de um vazamento acidental de um laboratório ainda é debatida, mas sem comprovação definitiva e com poucas evidências científicas robustas. Um vazamento intencional, por sua vez, é visto como teoria da conspiração, segundo especialistas. A explicação mais provável e aceita é, portanto, a evolução natural. Apesar disso, alguns estudos sugerem que o patógeno já circulava anteriormente.
O vírus é resultado de uma mutação dos coronavírus que acometem animais como os morcegos, o que possibilitou a infecção e a transmissão entre humanos, a partir de um hospedeiro intermediário. Trata-se de um betacoronavírus — cuja introdução na espécie humana nunca é branda, explica o virologista Fernando Spilki, professor da Universidade Feevale e membro da diretoria da Sociedade Brasileira de Virologia. O microrganismo foi o causador da covid-19, doença que parou o mundo em 2020.
Rapidamente, o número de casos globais começou a crescer e, em pouco tempo, explodiu. Os contágios seguiam-se de mortes: até fevereiro deste ano, foram 7 milhões de mortos no mundo, sendo cerca de 10% no Brasil (715 mil). No Rio Grande do Sul, 43,2 mil pessoas perderam a vida no período.
— O isolamento social, o uso de máscara e as questões de higiene foram fundamentais para evitar um dano ainda maior, um número de mortes ainda mais evidente naquele período, principalmente, em que ainda não tínhamos qualquer possibilidade de ter vacina — aponta Spilki.
O que caracteriza o coronavírus?
O vírus logo chamou a atenção pela facilidade de transmissão por via aérea. A capacidade de gerar casos graves e a letalidade também se destacaram por serem muito maiores do que as de outros vírus comuns, responsáveis por resfriados e pela gripe, recorda Paulo Gewehr, médico infectologista e supervisor do Núcleo de Vacinas do Hospital Moinhos de Vento, em Porto Alegre:
— Uma infecção nos pulmões rápida causava uma insuficiência respiratória muito importante e acabava levando ao óbito, principalmente nos indivíduos mais idosos e fragilizados. Mas também fazia casos graves em indivíduos mais jovens, ditos saudáveis, mostrando que o vírus era muito agressivo, mesmo naquelas pessoas que tinham um sistema imunológico imunocompetente. Essa foi a marca principal — ressalta.
Em 2025, o Sars-CoV-2 continua a circular; porém, com menor intensidade e resultando em casos de menor gravidade na população em geral — ainda há doença grave nos grupos de maior risco, conforme os especialistas. Com isso, a letalidade diminuiu consideravelmente, ressalta Pedro Hallal, epidemiologista e professor da Universidade de Illinois, nos Estados Unidos. Houve, porém, uma diminuição na detecção de casos, devido à baixa testagem, afirma Gewehr.
O cenário é efeito da evolução natural do vírus, das infecções nos indivíduos vacinados, e, sobretudo, da proteção conferida pelas vacinas, que reforçam a imunidade populacional, explicam os especialistas. Spilki frisa que não se pode confundir a situação com o que foi chamado de "imunidade de rebanho" porque, naquele tempo, sem a vacina, a exposição à doença levaria à morte.
A variante mais devastadora
Gama, Delta e Ômicron foram alguns dos termos incorporados ao cotidiano durante a pandemia. No Brasil, a variante Gama foi a mais grave, tornando-se mais devastadora do que a primeira onda de covid-19 e sendo responsável por mais da metade das mortes, lembra Spilki. A mutação atingiu os brasileiros no período entre doses das vacinas e com boa parte da população não imunizada. Rapidamente, em algumas semanas, o RS alcançou o primeiro lugar em número de óbitos.
— Foi terrível, porque a Gama surge com aquela hecatombe, que provocou a catástrofe lá em Manaus — recorda o virologista.

O surgimento de variantes de um vírus acontece quando ele é reintroduzido em populações com algum grau de imunidade, especialmente quando esta não está alta o suficiente, por baixa vacinação ou porque o vírus não conseguiu atingir grande parte da população. Isso resulta em um bloqueio parcial do vírus, o que confere a ele a capacidade de se replicar, realizando mutações e gerando novas variantes.
Em meio a milhares de novos casos, rapidamente centenas de variantes se alastraram pelo mundo. Tudo mudou com a chegada da vacina entre o final de 2020 e o início de 2021.
Atualmente, a velocidade de surgimento de novas variantes é muito mais baixa do que no passado, salienta Spilki. Por atingir pessoas já vacinadas com algumas doses, em alguns casos, o vírus não consegue se replicar o suficiente. Com isso, não gera uma quantidade importante de mutações para derivar uma nova variante.
As mutações são o motivo pelo qual as vacinas são atualizadas com frequência ainda hoje, explica Gewehr, do Hospital Moinhos de Vento. Desde 2022, a variante dominante é a Ômicron, que tem se derivado e recombinado.
Brasil cometeu série de erros
O epidemiologista Pedro Hallal pontua que a trajetória do Brasil não precisava ter sido daquela maneira. A mortalidade por covid-19 foi quatro vezes maior do que a média mundial. Se o país tivesse dado uma resposta dentro da média, mais de 500 mil vidas teriam sido poupadas, segundo o especialista.
O Brasil cometeu uma série de erros, conforme o epidemiologista, que liderou os esforços da Epicovid-19, principal monitoramento nacional da disseminação do vírus durante a pandemia. Entre eles, cita a falta de testagem e rastreamento de casos; atraso na compra de vacinas e lentidão no início da vacinação; promoção de medicamentos ineficazes, promovendo uma falsa segurança; falta de lockdowns eficazes; e incapacidade de equilibrar saúde pública e economia.
— O que a gente dizia desde o começo da pandemia? Olha, a fundamentação teórica para fazer em uma situação como essa são lockdowns de curtíssima duração e extremamente intensos. Vários lugares do mundo fizeram isso. Então, se chega um momento em que está estourando demais, fecha tudo por duas, três semanas, baixa a taxa de transmissão e reabre. O Brasil e praticamente todos os lugares adotaram um modelo meia-boca. Fica tudo meio que fechado por dois anos, isso não controla a disseminação do vírus e não resolve a questão econômica do país — lamenta.
A politização e as disputas ideológicas, somadas a uma série de ataques à ciência, prejudicaram a adoção de medidas eficazes e baseadas em evidências científicas no enfrentamento à pandemia, de acordo com Hallal, que é ex-reitor da Universidade Federal de Pelotas (UFPel).
Um país que ainda confia nas vacinas
Ainda que a trajetória normal de um vírus seja o enfraquecimento, esse desfecho foi antecipado pelas vacinas. O legado dos imunizantes é inegável.
A vacina foi fundamental para controlar e abreviar o impacto da pandemia, que poderia se prolongar por muitos meses ou talvez anos, destaca Gewehr, do Hospital Moinhos de Vento. Os imunizantes fizeram cair drasticamente a mortalidade e a letalidade, principalmente em quadros mais graves.
As tecnologias já vinham sendo desenvolvidas, e os imunizantes foram testados com segurança e eficácia em muitas pessoas, lembra Gewehr. Spilki avalia que representaram um "avanço tecnológico enorme".
O "milagre" da vacina já é conhecido há muito tempo. Para Hallal, essa talvez seja a história de sucesso da pandemia. Embora haja hesitação vacinal, o Brasil vacinou bastante, mesmo com uma campanha de desestímulo à imunização e de desinformação muito presente durante a pandemia.
— Acho que ganhamos no final. Perdemos muitas batalhas durante essa pandemia, mas essa ganhamos. Mais de 90% da população brasileira tomou pelo menos duas doses da vacina contra covid. Mesmo entre aqueles que estão de um lado ideológico que era contra a vacina — salienta Hallal.
(A covid-19) ruma para ser mais uma infecção responsável pelo quadro que chamamos de resfriado
PAULO GEWEHR
Infectologista e supervisor do Núcleo de Vacinas do Hospital Moinhos de Vento
Apesar disso, a desconfiança com relação aos imunizantes aumentou — mas ainda é menor do que em outros países.
— Ainda temos um país que confia nas vacinas, e ganhamos essa batalha — frisa. — A tragédia não foi ainda maior porque as pessoas se vacinaram.
Pelo fato de as vacinas serem utilizadas em larga escala, foram registrados alguns eventos adversos potencialmente graves, mas menos impactantes do que a doença — o que é normal, explica Gewehr. O supervisor do Núcleo de Vacinas do HMV refuta teorias conspiratórias de que as vacinas tivessem causado aumento de problemas cardiovasculares e mortes, ressaltando que não há evidências científicas que liguem os imunizantes a esses problemas.
O que esperar do coronavírus agora?
Atualmente, o Sars-CoV-2 está em um ritmo de controle mais parecido com o de outras doenças respiratórias. Pode estar se tornando cada vez menos patogênico, como é o caminho normal de um vírus, aponta Spilki.
Para ter maior transmissibilidade e, consequentemente, se perpetuar, a tendência é de que o vírus entre em atenuação e cause menos sintomas, resultando em menos mortes. Nem sempre, entretanto, a letalidade diminui, ressalva Spilki — por vezes, a evolução pode ter um efeito contrário inesperado, como aconteceu com a variante Gama.
Casos e eventuais mortes continuarão a acontecer, assim como em outras doenças, como a gripe, pontua Hallal, o epidemiologista. Gewehr acrescenta:
— Ruma para ser mais uma infecção responsável pelo quadro que chamamos de resfriado.
Haverá uma nova pandemia?

Os especialistas são categóricos em afirmar que uma nova pandemia acontecerá. O desmatamento, o contato com ecossistemas isolados e a destruição de hábitats, bem como as mudanças climáticas, a globalização e o risco de degelo do permafrost (camada congelada abaixo da superfície da Terra que contém microrganismos antigos), estão entre os fatores que explicam essa temida possibilidade e precisam ser acompanhados — e, alguns casos, evitados.
Os ciclos de doenças foram encurtados, e surtos e epidemias são cada vez maiores e mais impactantes, como no caso de dengue, monkeypox e oropouche, lembra Spilki.
— Não temos a menor dúvida de que essa não foi a última ameaça que passamos contra a espécie, muito menos nesta década — alerta o virologista.
Acho que ganhamos no final. (...) Mais de 90% da população brasileira tomou pelo menos duas doses da vacina contra covid
PEDRO HALLAL
Epidemiologista e professor da Universidade de Illinois (EUA)
Embora haja motivos para preocupação, Hallal prefere ser mais otimista e afirma que gostaria de estar certo na previsão de que a geração atual não viverá outra pandemia.
A humanidade está mais preparada e equipada para lidar com a possibilidade de outra crise sanitária global, acreditam os cientistas. Isso inclui o desenvolvimento de testes, os sistemas de vigilância epidemiológica e a tecnologia para geração rápida de vacinas (com destaque para o mRNA).
Receios quanto ao futuro
A curto prazo, há preocupação com os novos influenzas que vêm circulando, especialmente a gripe aviária H5N1. A médio e longo prazo, é preciso examinar e monitorar todas as espécies animais de origem desses vírus (silvestres e domésticas), antecipando-se a possíveis transmissões.
No Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Vigilância Genômica de Vírus e Saúde Única, com sede na Feevale, pesquisadores se dedicam a essa tarefa. Ações como essa levaram à descoberta de um novo coronavírus em morcegos na China, que está sendo vigiado.
— Não podemos mais nos furtar e esperar que aconteça, não podemos mais deixar que a espécie humana passe pela catástrofe que foi a pandemia de covid-19 — apela Spilki.
O professor da Feevale diz que tem receios quanto ao futuro. Lições fundamentais como a higiene das mãos, a utilização de máscara quando se está doente e a ventilação dos locais já foram descartadas por parte da população.
Em um mundo em que a verdade científica é contestada, o virologista teme não haver condições de acordo para promover medidas não farmacológicas de controle que foram importantes no início da pandemia, como isolamento social e uso de máscara.