Parada no sinal vermelho e chorando no carro ao lado, a cena daquela jovem mulher ainda não saiu da minha cabeça. Volta e meia, recordo-me dos soluços e lágrimas jorrando enquanto ela apertava o volante com força. Olhei de soslaio para o banco de trás e pude conferir que malas faziam companhia a casacos e almofadas desarrumadas, umas por cima das outras. Cheguei a tentar esboçar compaixão, mas não deu tempo – quase nunca dá, não é mesmo? A sinaleira abriu, e a mulher tomou seu rumo.
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E, assim, antes de voltar a movimentar o veículo, percebi quanto essas situações acontecem ao nosso redor, sem que a gente consiga notar, oferecer ajuda, pensar na própria vida. Quantos entrecruzamentos nunca se realizam de fato, porque estamos tão autocentrados que não damos chance de aproximação?
Tenho me lembrado dela, dessa imagem que vem à mente e em todas as interpretações que ela sugere. Estaria partindo, com o coração partido? Estaria recomeçando? Chorando uma perda? Sem saber os porquês da tristeza daquela mulher, fantasiando sobre as possibilidades de reinvenção que todas as rupturas pressupõem e celebrando a excitação de qualquer reinício, imagino que seria perfeito se conseguíssemos fazer o frio na barriga inicial de qualquer atividade ser prolongado infinitamente.
Com a chegada do amor, com todos aqueles olhares, suspiros, confidências, expectativa. A revelação da melhor versão de si mesmo, a ausência de ciúme, a projeção dos sonhos no outro, a pulsação de uma vida prestes a ser ressignificada. No início do trabalho, a motivação inabalável, o desejo de acertar o foco, a vontade de mostrar e desenvolver todas as habilidades. A tentativa de se reinventar, a disponibilidade para ajudar os outros, o interesse no aprendizado constante.
Na volta aos bancos escolares, a vontade de aprender, a complacência ao receber críticas, as novas amizades, o esmero na entrega dos trabalhos, a atenção em aula, a admiração pelo professor. Os cafés no intervalo, as idas à biblioteca, as discussões sobre teorias sem tanta importância...Mas, infelizmente, mais cedo ou mais tarde a rotina começa a aparecer, bem como a pressão, as contas, as cobranças, a desilusão, o estresse. Aí, dá até vontade de jogar tudo para o alto, colocar as malas no carro e seguir soluçando por aí, mesmo sem rumo.
Fantasia ou vida real, nesse caso, só há dois caminhos: transformar tudo de uma vez só ou torcer que um acaso efêmero, em algum momento, mude nossa vida num piscar de olhos e nos leve, de volta, para os recomeços.
#Almanaque
Tríssia Ordovás Sartori: pelo frio na barriga infindo
Quantos entrecruzamentos nunca se realizam de fato, porque estamos tão autocentrados que não damos chance de aproximação?
Tríssia Ordovás Sartori
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