Por Rafael Codonho
Jornalista, sócio-diretor da agência Critério
Há certas fotos que parecem captar uma alma. Revelam, a partir do registro de um instante, o que é destinado à eternidade. A imagem que ilustra esta página é um desses casos: ali está meu avô Manoel tomando um chá com os olhos fixos no horizonte. Calmo, quieto, contemplativo: três características tão suas e que ressoavam a todos os que o conheciam. Não havia distrações. Ele se encontrava presente naquele momento de maneira verdadeira e plena.
O tal retrato gerou uma reflexão tão profunda em mim que acabou se tornando uma pintura em aquarela, permanecendo comigo a cada dia de trabalho por vários anos. Aquele quadro se fixou na parede como um sinal de contradição, mostrando um sentido oposto ao espírito dos nossos tempos. Estamos falando demais, empilhando palavras desnecessárias? Perdemos a capacidade de ficar sossegados e na própria companhia? Facilmente nos entediamos, sempre atrás da próxima dose de dopamina? Precisamos, o tempo todo, atender aos nossos sentidos, cedendo aos desejos dessa criança mimada? Queremos que nossa felicidade seja comprada sob prestações de viagens internacionais e restaurantes chiques? O senhor calvo, segurando serenamente sua xícara, mostra que é possível ser diferente.
É verdade: nunca foi fácil para o homem conviver com o silêncio. Porém, também é fato que a tecnologia agregou novas camadas de dificuldade a esse processo. Somos interrompidos a todo momento e por todos. As notificações captam nossa atenção e devastam nossa habilidade de concentração. É até bom ser multitask, mas como é duro tocar uma tarefa do início ao fim sem cair na tentação de dar uma conferida nas redes sociais. O TikTok é a mais nova bolacha recheada superprocessada, que consumimos na hora da fome, mas não nos alimenta. E pior: fica apenas aquela sensação de vazio e entojo gerada pela má escolha.
Com tantas inovações, ganhamos conveniência e conforto. Por outro lado, perdemos muito da essência que nos faz uma pessoa humana, composta de corpo e alma. Em meio a tantas distrações, a correnteza nos leva para bem longe de pensar nas grandes questões que marcam a humanidade. Vamos acumulando riquezas e “experiências” – a palavrinha da moda –, enquanto desperdiçamos aquele que é o nosso maior patrimônio: o tempo. Que o digam as horas que nos evaporam no mau uso da internet. Aliás, um problema que somente se agravará nos próximos anos, considerando os vícios de quem é nativamente digital.
Todos nós vivemos, mas nem todos vivemos bem e de modo consciente. Vergonhosamente, muitas vezes, nosso comportamento não é diferente do de um boi entre uma manada. E as consequências das decisões equivocadas que tomamos, a cada minuto de nossas vidas, estão expressas na explosão de casos de depressão, suicídio, burnout, ansiedade e dependência química. A infelicidade é o fantasma que perambula nesta complexa década de 2020. E muito disso tem relação com nossa crescente incapacidade de abrir espaço para o silêncio e lidar com o parceiro indesejado que é a solidão. Corremos esbaforidos e preferimos o barulho do mundo, que apenas ilusoriamente preenche os espaços vazios da nossa existência.
No livro O Poder do Silêncio, Robert Sarah defende que a humanidade deve aderir a um movimento de resistência. “O que acontecerá com nosso mundo se ele não busca intervalos de silêncio? O descanso interior e a harmonia só podem fluir do silêncio. Sem ele, a vida não existe. Os maiores maiores mistérios do mundo nascem e se desenrolam em silêncio. Como a natureza se desenvolve? No maior silêncio”, escreve o cardeal guineense, descrevendo o nascimento de uma árvore, a subida do sol e o crescimento de um bebê no útero de sua mãe. E sentencia: “O silêncio é maior liberdade do homem. Nenhuma ditadura, nenhuma guerra, nenhum barbarismo pode tirar dele esse tesouro divino”. Não à toa, algumas das mais nobres atividades humanas dependem dessa condição: da produção de uma obra de arte à oração. Nosso contato com o que é bom, belo e verdadeiro, também.
Há alguns anos, meu avô partiu. Como era de costume, foi sem muito alarde. Ele não possuía diploma de faculdade, mas carregava uma sabedoria muito superior aos iluminados de hoje em dia. Era um homem simples e calado, no melhor dos sentidos. E deixou um exemplo que silenciosamente grita dentro de mim até hoje. Falemos menos, por favor.