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Deu virada histórica no Oscar de melhor filme internacional: na noite deste domingo (2), no Dolby Theatre, em Los Angeles, a atriz espanhola Penélope Cruz anunciou Ainda Estou Aqui como vencedor na 97ª cerimônia de premiação da Academia de Hollywood. O drama dirigido por Walter Salles e protagonizado por Fernanda Torres é a primeira produção brasileira a conquistar uma estatueta dourada. Nessa categoria, conseguiu para o país um feito que já havia sido tentado por O Pagador de Promessas (1962), de Anselmo Duarte, O Quatrilho (1995), de Fábio Barreto, O que É Isso, Companheiro? (1997), de Bruno Barreto, e Central do Brasil (1998), do mesmo diretor.
Os números estavam contra Ainda Estou Aqui e a favor de seu maior rival. Concorrendo pela França, Emilia Pérez era o campeão de indicações no Oscar 2025: 13 no total, quebrando o recorde entre títulos não falados em inglês. O filme brasileiro tinha três, e Flow (Letônia), duas — também competia entre os longas de animação, categoria que acabou vencendo. Os outros dois rivais, A Garota da Agulha (Dinamarca) e A Semente do Fruto Sagrado (Alemanha), só disputavam o prêmio internacional.
Outra estatística contrária a Ainda Estou Aqui: Emilia Pérez ganhara praticamente todos os prêmios anteriores de melhor filme internacional. No Globo de Ouro, no Critics Choice e no Bafta, da Academia Britânica, havia derrotado a cinebiografia de Eunice Paiva.
Mas os dois primeiros troféus foram entregues antes que se avolumassem as polêmicas e as críticas sobre Emilia Pérez, e a votação da Academia Britânica começou quase uma semana antes de serem resgatados os tuítes com declarações islamofóbicas e racistas da atriz principal, Karla Sofía Gascón, que também atacou o próprio Oscar e acabou afastada da campanha de divulgação do próprio filme. Havia a expectativa — ou no mínimo a esperança — de que a votação final do Oscar, realizada entre os dias 11 e 18 de fevereiro, fosse influenciada tanto pelo engajamento nas redes sociais contra o musical francês quanto pela barulhenta torcida brasileira.
E aconteceu: a sucessão de posts negativos parece ter desmanchado a imagem de Emilia Pérez como um filme transgressor e progressista junto aos cerca de 10 mil eleitores da Academia de Hollywood (que só premiaram o filme em duas das 12 categorias que poderia vencer: atriz coadjuvante, para Zoe Saldaña, e canção original, para El Mal). Afinal, aos olhos da indústria cinematográfica, tradicionalmente alinhada ao Partido Democrata dos EUA, o musical francês pode, sim, ser visto como inclusivo e afrontador. Com uma protagonista transexual e ambientado no México, não deixa de servir como um veículo de oposição ao republicano Donald Trump, que, logo após ser empossado para um segundo mandato na Casa Branca, mandou deportar imigrantes ilegais (incluindo 4 mil mexicanos) e assinou decretos contra as pessoas trans.
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Mas Ainda Estou Aqui também é um filme político — e que quase só colheu elogios da imprensa estadunidense. Aliás, os cinco candidatos ao Oscar internacional permitiam leituras sociopolíticas. Até mesmo a animação Flow: a trama sobre a luta de um gato, um cachorro, uma capivara, um lêmure e uma ave de rapina para sobreviverem durante uma enchente remete a uma fábula sobre tolerância, empatia e cooperação entre povos diferentes.
Já o retrato cruel da Copenhague pós-Primeira Guerra Mundial visto em A Garota da Agulha alerta sobre como momentos de crise político-social podem gerar ambientes propícios para a proliferação da violência e da negligência institucional.
Representante da Alemanha, mas dirigido por um iraniano (Mohammad Rasoulof), ambientado em Teerã e falado em persa, A Semente do Fruto Sagrado é um filme aparentado de Ainda Estou Aqui: ambos centram o foco em uma família para denunciar o impacto devastador da violência do Estado sobre a sociedade.
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Em um momento de preocupação global com a ascensão de líderes de extrema direita e com tendências ditatoriais, Ainda Estou Aqui teve sua visibilidade aumentada graças a acertos da campanha de distribuição e marketing nos EUA. Estreou nos cinemas estadunidenses no dia 7 de fevereiro, duas semanas após o anúncio das indicações, e ocupando mais de 700 salas — o maior lançamento de um filme brasileiro naquele mercado. E teve como "embaixadora" a atriz Fernanda Torres, que esbanjou carisma e bom humor nas premiações e nos programas de entrevista.
De nada adiantariam elementos extrafílmicos se Ainda Estou Aqui não fosse uma obra poderosa. Um dos seus trunfos é a sobriedade, prenunciada já nos créditos de abertura, com letras brancas que imitam a tipografia das máquinas de escrever se sobrepondo a um fundo totalmente preto. Walter Salles evita o dramalhão ou a exploração sádica da tortura, enquanto Fernanda Torres abraça a contenção, equilibrando estoicismo e esperança ao encarnar Eunice, que, após o desaparecimento do marido, o engenheiro civil e deputado federal cassado Rubens Paiva (papel de Selton Mello), durante a ditadura militar no Brasil (1964-1985), é obrigada a se reinventar e traçar um novo destino para si e seus cinco filhos.
O diretor de fotografia Adrian Teijido, o montador Affonso Gonçalves e o compositor australiano Warren Ellis são aliados fundamentais na proposta de Salles. Já os roteiristas Murilo Hauser e Heitor Lorega fizeram mesmo por merecer o prêmio Osella de Ouro no Festival de Veneza. Eles conseguiram transformar um livro de memórias que vai e volta no tempo, oscilando entre a narrativa e o comentário, com derivações, associações e indagações, em um filme com estrutura linear e dramaturgia.
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A história começa em dezembro de 1970, na época do sequestro do embaixador suíço Giovanni Enrico Bucher por guerrilheiros que combatiam a ditadura. A primeira cena traduz visualmente o clima do período e a situação da protagonista. A placidez do banho de mar de Eunice na praia do Leblon, no Rio, é quebrada pelo sobrevoo barulhento de um helicóptero militar. Algo de ruim paira sobre a família Paiva. E privilégios socioeconômicos não são imunizantes diante da perseguição política.
Como se fosse um filme de terror que se desnuda aos poucos, no início Ainda Estou Aqui investe em cores, canções animadas e uma edição mais fragmentada para retratar o cotidiano alegre e amoroso, com portas e janelas sempre abertas, de Rubens, Eunice e os cinco filhos: a jovem Veroca (interpretada por Valentina Herzage na fase inicial e depois por Maria Manoella), as adolescentes Eliana (Luiza Kosovski/Marjorie Estiano) e Nalu (Barbara Luz/Gabriela Carneiro da Cunha) e as crianças Marcelo (Guilherme Silveira/Antonio Saboia) e Babiu (Cora Mora/Olivia Torres). Quando, no dia 20 de janeiro de 1971, agentes da repressão invadem a casa dos Paiva, as cortinas se fecham, a trilha sonora torna-se apenas instrumental, a montagem sinaliza uma passagem mais devagar do tempo: cada minuto parece uma eternidade para a protagonista enquanto espera a volta do marido, que teria sido levado apenas para prestar depoimento. Ela nunca mais o viu.
Maria Lucrécia Eunice Facciolla Paiva também foi presa, mas retornou para casa. Então, teve de se dividir em muitas. Com as filhas mais velhas, podia falar sobre o que estava acontecendo, embora preferisse se esquivar; com os caçulas, optou pela dissimulação protetora. Precisou arranjar um sustento financeiro enquanto buscava informações sobre Rubens. Acreditou em ilusões o quanto foi possível e recusou-se a padecer.
— Nós vamos sorrir — diz, em uma cena já clássica do filme, ao fotógrafo que queria uma pose triste ou mais séria da família para uma reportagem sobre o desaparecimento.
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Eunice não podia padecer, como mãe de cinco, mas seu sorriso também é uma declaração de dignidade, uma afirmação da resistência do amor e da lembrança, um desafio aos ditadores, aos torturadores e aos fascistas de plantão: conforme disse Fernanda Torres em entrevistas, sua personagem "é uma mulher que nunca quis se vitimizar em público, porque sentia que isso seria dizer para a ditadura que eles tinham vencido". A família Paiva virou símbolo do impacto devastador da violência do Estado sobre a sociedade. A luta pessoal de Eunice virou símbolo da luta coletiva pela redemocratização do Brasil — mas com universalidade suficiente para comover a Academia de Hollywood.
E Eunice vai sorrir outra vez, ainda que entre lágrimas, 25 anos depois, em 1996, quando finalmente a morte de Rubens Paiva foi reconhecida pelo Estado. A protagonista do filme repete as falas da personagem real:
— É uma sensação esquisita sentir-se aliviada com uma certidão de óbito. Durante muito tempo, eu e meus filhos ficamos na dúvida se Rubens estava morto ou não. Essa foi a forma de tortura mais violenta que impuseram às famílias dos desaparecidos políticos.
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Ainda Estou Aqui terá mais um salto no tempo, para 2014, quando a matriarca da família já enfrentava havia muitos anos o Alzheimer — em uma cruel ironia do destino para com uma mulher que lutou incansavelmente pela memória e pela verdade. Nessas duas fases, a de 1996 e a de 2014, o filme assume um ritmo apressado, episódico, e cai em dramaticidade. Mas a brevíssima participação especial de Fernanda Montenegro torna-se eterna. Primeiro porque sintetiza o alerta contra o esquecimento dos mortos, dos desaparecidos e dos crimes cometidos pela ditadura. E, a exemplo do que demonstrara no epílogo de outro título brasileiro que tentou vaga no Oscar, A Vida Invisível (2019), a atriz nonagenária é eloquente sem dizer nada; com um mínimo gesto, provoca um terremoto emocional.
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