
A desconexão entre o discurso e a realidade, quando o tema é a distribuição de médicos no Brasil, está a exigir um choque de bom senso porque, como sempre, as escolhas que regem a vida das pessoas têm lá as suas razões. E soa falsa e hipócrita a tentativa de impingir aos médicos o rótulo de mau-caratismo generalizado.
Nossos governantes, em um dos momentos de máxima desorientação, chegaram a proferir a sandice de que os médicos brasileiros só queriam trabalhar na Avenida Paulista, porque esses senhores sempre souberam que alguns dos centros de excelência, que coincidentemente eram os que lhes convinham, estavam a poucas quadras da tal avenida.
Esta discriminação assistencial, paga com percentuais do salário de quem dorme na fila da madrugada para conseguir uma ficha no SUS, retira qualquer resíduo de autoridade moral de quem se supõe intocável na nobre missão de decidir o que é melhor para os outros.
Para quem se nega a acreditar em tamanha má intenção num tema tão nobre, só resta como justificativa para o caótico estado de coisas a ignorância de quem decidiu multiplicar o número de profissionais como solução para a escassez de médicos nos lugares mais inóspitos, como se essa fosse a melhor solução para as dificuldades assistenciais fora dos grandes centros.
Ignorar o baixo nível cultural do povo pobre que, com seu jeito de humilde submissão, chegou a agradecer o atendimento tecnicamente lamentável do programa Mais Médicos, e ainda usar esta condição para argumentar que qualquer médico é melhor do que médico nenhum, é lastimável porque implica oferecer, justamente aos mais vulneráveis, uma medicina de última categoria, contando que de qualquer forma ela será festejada. E, claro, fazer de conta que nem percebeu que essa é uma medida por acaso eleitoreira e, portanto, bem-vinda.
É muito triste admitir que a nossa degradante política de saúde pública aposta no respaldo de um povo que considera favor tudo o que recebe e que, convenientemente, por falta de instrução elementar, ainda está muito abaixo da linha rasa da indignação.
Na verdade, sem uma carreira médica institucionalizada que garanta ao longo do tempo uma progressão profissional, é utopia pretender que um jovem médico escolha como rotina de trabalho exilar-se em um rincão remoto, sem ter com quem interagir profissionalmente, e submeter-se, diariamente, aos resmungos de que lá a educação dos filhos é precária.
E se isso não bastasse, ainda voltar para casa e dormir, todas as noites, com a consciência atormentada de que muitas daquelas mortes presenciadas poderiam ter sido evitadas com os recursos que o jovem médico aprendeu existirem.
Esta torturante sensação de impotência crônica liquida com o encanto de ser médico, coloca pedras no travesseiro e impõe sacrifícios a que poucos casamentos resistirão.
Todo discurso em descompasso com esta realidade é falso.