
"Feliz é o que você percebe que era, só que muito tempo depois." (Millôr Fernandes)
A solidão é definida como um estado mental em que há uma sensação de desconexão das outras pessoas, e por todas as razões é mais frequente no velho submetido a inevitáveis limitações físicas, das quais a surdez é um elemento muito relevante, ainda que algumas vezes possa ser considerada uma bênção quando o tema central do bate-papo dos desocupados é a vida de outras pessoas.
A essas dificuldades naturais se somam a redução progressiva da cognição, a desaceleração da marcha e a dificuldade de aceitar a perda do protagonismo nesta desafiadora transição entre ter para si a estimulante responsabilidade de cuidar de uma família e o constrangimento de perceber que progressivamente se tornou um fardo para sua prole amorosa.
A soma desses desencantos explicava o silêncio no elegante salão de recreação de um luxuoso lar de velhinhos, onde a família colocara o Juvenal, um paciente que operei na virada do século e, depois de alguns anos de convívio inteligente e divertido, perdi de vista. A pedido da família, preocupada com uma tosse persistente e perda de peso, fui visitá-lo.
Achei curioso o cuidado da filha em baixar a voz ao telefone: "Doutor, o senhor não vai acreditar, mas quando se convenceu de que estava curado do câncer, ele voltou a fumar". Mal ela sabia que agora, aos 90 anos, ele teria em mim um aliado para não abandonar essa escassa fonte de prazer.
Informado da minha chegada, o Juvenal foi trazido para um ambiente mais privativo. A recepção foi cordial: "Minha filha avisou que o senhor viria me visitar, e eu lhe agradeço muito".
Quando nos separamos, ele me segurou pela manga do casaco
Depois dessa introdução protocolar, a conversa não fluía, as queixas respiratórias eram vagas, e duas vezes ele fez uma pausa incompreensível e inesperada depois de criar expectativa com um anúncio promissor: "Tenho uma coisa importante pra lhe contar". Sei lá para onde escorreu cada lembrança desperdiçada, mas depois de nova promessa dobrou a sensação incômoda de que se fosse tão importante ele não teria esquecido.
Terminada a consulta, com as recomendações entregues por escrito à cuidadora, ouvi uma confissão deprimente: "Obrigado por ter vindo, doutor. Gostei muito da sua visita, e o senhor não imagina o quanto eu gostaria de me lembrar quem é o senhor".
Comovido e triste com o que restara da cabeça outrora brilhante e debochada do meu amigo, não consegui dizer nada e me limitei a um abraço demorado.
Quando nos separamos, ele me segurou pela manga do casaco, com uma força inesperada, e com um sorriso enviesado da paralisia facial afirmou, quase cochichado: "Desse abraço eu me lembro".
Tratei de me soltar, girei nos calcanhares e acelerei o passo. Não ajudaria nada ele perceber a minha vontade de chorar.