
Não tivemos chance de escolher onde nascemos, mas, não importa onde tenha sido, se estabelece o primeiro vínculo, genuíno e definitivo. Esse laço de pertencimento a um determinado sítio o transforma numa marca da nossa identidade.
Quando a vida nos arrasta para outro lugar, levamos um quinhão da terrinha natal, o que explica eventuais fisgadas de saudade do tempo em que colecionávamos muitas esperanças e raras certezas.
Já se passaram 60 anos desde que entrei em Porto Alegre pela Farrapos e me impressionei com a primeira avenida engarrafada da minha vida. Por alguma razão, eu soube logo que aquela ia ser a cidade definitiva e tratei de arrumar para ela um cantinho no meu coração, onde estava encravada, e para sempre, a minha amada Vacaria.
Quando foi indispensável, saí em busca de qualificação técnica, me encantei com um novo mundo, mas nunca duvidei de que ia voltar.
Gosto de pensar Porto Alegre como uma cidade pra chamar de minha, convencido de que essa sensação de possessividade brota espontaneamente da pretensão de que ela me aceita como um nativo, e eu nunca pensei nela apenas como um espaço físico qualquer onde eu trabalho pra viver.
Em nome desse afeto, que eu fantasio que seja mútuo, peço ajuda para resgatar a nossa Porto que já foi Alegre. Desde setembro de 2023, não somos mais os mesmos. Descobrimos um tipo de medo que não conhecíamos e passamos a olhar a nossa paisagem com alguma desconfiança.
Não sei quando recuperaremos o prazer de caminhar na chuva só para sentir o cheio de terra molhada
Até a rua que festejamos como a mais linda do mundo, com aquele belo túnel verde, passou a ser percebida como um alçapão de árvores velhas, de braços pendentes e ameaçadores. Com tantos galhos debruçados sobre uma rede elétrica de fios emaranhados, nem precisamos dos alertas do Inmet anunciando novos tornados porque já aprendemos que com um vento encanado mais decidido já vamos dormir mais cedo, sem ar condicionado. E, se não faltar água, tomaremos banho frio na manhã seguinte.
A notícia divulgada um dia depois da última ventania de que os órgãos responsáveis tinham se reunido para traçar diretrizes na prevenção de novos episódios foi deprimente, porque deixou a impressão de que só agora começamos a acreditar que eles se repetirão.
Não sei quando recuperaremos o prazer de caminhar na chuva só para sentir o cheio de terra molhada, nem se um dia esqueceremos o medo e voltaremos a considerar o ruído dos pingos no telhado como um sonífero delicioso.
Quanto ao Guaíba, desde sempre festejado como nosso incomparável cartão-postal, a perda não podia ter sido maior. Entulhado de detritos trazidos pela enxurrada, se transformou numa lagoa rasa. Mesmo com o sol tentando reanimá-lo com a volta dos mais lindos entardeceres, ele parece constrangido com a pecha humilhante de bebê chorão, que com qualquer chuva mais pesada já se derrama em lágrimas para a avenida.
É angustiante reconhecer que precisamos fazer mais do que simplesmente lamentar o que perdemos, se quisermos ter a nossa cidade de volta.