A tendência é de que uma parte significativa da população aceite, sem reclamar, que as frustrações simplesmente se repitam, sem improvisações, seguindo a perspectiva de termos passado o ano inteiro repetindo as coisas de sempre. Essas picuinhas que fazem parte da mesmice do cotidiano, e que de tanto serem reprisadas passam a ser comandadas pelo piloto automático.
Como se sabe, a rotina limita a necessidade de introspecção e encolhe a criatividade, e ficamos então à mercê dessa sensação de estagnação sensorial, que reduz a ambição cultural, estimula o comodismo e anestesia a indignação.
Se não fosse assim, como explicar a indiferença com que assistimos às denúncias de atropelamentos éticos que, de tão recorrentes, mirraram até o furor dos denunciantes?
Visto pelo prisma dos horrores, 2024 se encerra como um ano que não precisava ter existido e teríamos menos o que lamentar.
As crises climáticas, sanitárias e éticas se sucederam com uma intensidade capaz subjugar o ânimo de um povo, historicamente visto como um modelo de submissão para os isentos ou um exemplo de resiliência, como convém aos ideologicamente comprometidos.
Os especialistas em comportamento humano reconhecem que a resistência a essas crises devastadoras não é ilimitada, como pretendem os ufanistas, e quando se sucedem em tempo insuficiente para a recuperação da anterior, o dano é imensurável.
Foi assim com o mundo todo durante a covid-19, e muito mais para os gaúchos que antes de terem juntados os cacos da pandemia foram devastados por uma tragédia climática que arrastou vidas, bens materiais e memórias irresgatáveis.
Visto pelo prisma dos horrores, 2024 é um ano que não precisava ter existido.
Quando recebi o material de uma pesquisa que buscava elencar as melhores e as piores coisas do ano que termina, fiquei impressionado com o predomínio das experiências ruins que fluíram espontaneamente, justificando esta epidemia silenciosa e solerte de crises psíquicas decorrentes da infelicidade coletiva.
A agitação frenética do mundo moderno, a competição desregrada e implacável pelo sucesso e a intransigente busca da equiparação pessoal e profissional têm produzido uma legião de sequelados emocionais.
Ao tentar dividir a angustia das questões mais difíceis, resolvi convocar um professor que nunca envelhece porque a cabeça não lhe permite, e que muitas vezes disse o que eu não sabia como dizer: "Qual foi a pior e a melhor descoberta do ano que termina?".
"A pior foi perceber que adoecemos quando a justiça assusta as pessoas de bem. E a melhor foi o lampejo de que a nossa orfandade de ídolos pode estar acabando, e senti vontade de adotar esse menino, o João Fonseca, antes que o sucesso lhe suba à cabeça."
Transformar um garoto de 18 anos em porta-bandeira da nossa esperança, sem ninguém oferecer alternativas, dá uma ideia do tamanho da nossa carência, da qual ele está isento por não ter vivido o suficiente para compartilhar da vergonha que sentimos pelo país que vamos lhe brindar como herança. Desculpe, João.