Não Fale o Mal, nas duas versões (a dinamarquesa, de 2022, e a de Hollywood, em 2024), é um filme impressionante. Mesmo na edição amenizada pela tendência dos americanos de buscar obcessivamente o triunfo do bem e, na medida do possível, um final feliz, a crueldade ultrapassa o limite do imaginável, com direito à opressão retrosternal dos espectadores mais destemidos. Sabe aqueles tipos estranhos que gostam (!) de filmes de terror? Esses.
Pois nesse caso, apesar da antecipação do gênero do filme na mídia, os primeiros três quartos da história são tranquilos, às vezes até divertidos, descondicionando o espectador para o que virá no quarto final. (Alerta de spoilers.) O casal de psicopatas que rege a trama e administra maldade com a naturalidade de quem come pipoca caminhando na rua, e discute educação de filhos como quem saiu de uma reunião de pais e mestres, é chocante, especialmente na versão dinamarquesa, em que os protagonistas do mal inicialmente não apenas parecem pessoas normais, mas cordiais e amistosas, a ponto de induzir no público a sensação transitória de que talvez esteja assistindo ao filme errado.
Abstraídas as diferenças de revolta ou submissão entre os casais subjugados, ambos têm um momento de perplexidade, quando, diante da maldade absurda, questionam: "Por que vocês estão fazendo isso com a gente?". E a resposta, que devia ter sido esquecida pelos espectadores depois de uma noite de sono sem pesadelos, por alguma razão ficou martelando: "Porque vocês deixaram".
Num determinado momento, o rompante de destemor do torturado assusta o torturador.
Testados no auge do sofrimento, todos alcançaremos o limite, definido como a fadiga do sofrimento, e então, nesse dia, descobrimos que nós somos muito mais do que as coisas ruins que nos acontecem, e a partir desse ponto nos tornaremos irreconhecíveis.
Claro que esse marco de tolerância é pessoal, e no coletivo se expressa diversamente em diferentes sociedades e etnias, mas é uma ingenuidade supor que a humilhação que estraçalha a autoestima possa ser mantida indefinidamente.
A submissão ao medo, muitas vezes mais fantasioso do que real, também bate no teto quando a vítima passa a odiar a si mesma pela submissão degradante, produzida por inércia ou covardia. Isso ocorre nos torturados crônicos, como relatou nosso querido Flávio Tavares (saudade das crônicas dele) no seu maravilhoso Memórias do Esquecimento, dando conta de que, num determinado momento, o rompante de destemor do torturado assusta o torturador, pela inversão inesperada dos papéis.
Como a velhice é a condição que marcha para o desfecho mais previsível, chegará um tempo em que nossos netos, perplexos com o país que lhes oferecemos como herança, terão adquirido o direito de perguntar: "Por que vocês deixaram que tantas coisas ruins acontecessem?".
Temo não existir dignidade possível em qualquer justificativa que se tente oferecer.