"Vivemos das vidas dos outros. Também nos perdemos, quando o outro se perde." (Padre Anibal Gil Lopes)
Se você gosta de viajar como eu, certamente já descobriu que um grande momento de toda e qualquer viagem é arrumar a mala para começar a volta para casa. E se o tempo fora foi longo, a saudade mais se encarregará de acelerar o coração a caminho do aeroporto.
E nada muda se fomos superfelizes, tendo estado onde estivemos. Nem o quanto tenham sido fantásticas as descobertas, essas que sempre representam as coisas mais importantes do arquivo sensorial dos viajantes inveterados. Nada disso afeta o ânimo de voltar.
É assim porque não importa se somos um caixeiro viajante ou um aborígene convicto: é indispensável que tenhamos um lugar a que pertençamos, para termos um cantinho onde arquivar as nossas pérolas afetivas, refugiadas em livros, fotos, cartas e discos. Entre essas "coisas nossas", espontaneamente selecionamos as mais importantes, pela necessidade que sentimos de periodicamente revisitá-las e de alguma maneira recapitular a lembrança amorosa que essas relíquias carregam. Quanto mais tempo passou, mais valorizamos a recapitulação, porque é através dessas cicatrizes amorosas que nos certificamos que os nossos momentos de grande alegria ou profunda tristeza foram reais.
"Seu moço, veja só o que a água fez com a única foto que eu tinha do meu velho: apagou!"
Não por acaso, depois de grandes incêndios e inundações, os resgatados ficam repetindo "perdi tudo", colocando tanta ênfase no tudo, que os desavisados podem supor que ele está anunciando um prejuízo unicamente material, irrecuperável. Não necessariamente. Muitas vezes, esse tipo de perda é minimizado pela vítima, que se consola com a experiência do vizinho que perdeu alguém da família.
Mas claro que o dano material também machuca, e duplamente, porque é sempre o somatório de duas perdas: o valor monetário envolvido e o quanto esforço foi dispendido na conquista daqueles bens. O relato de um morador da margem de um dos nossos rios furiosos ilustrou tristemente essa realidade: quando o repórter lhe perguntou como pensava reconstruir sua casa, ele foi taxativo: "Eu não tenho mais nada para reconstruir, porque a enchente não levou só a minha casa, ela levou também meu terreno!".
Muito improvável uma tristeza maior do que não ter casa para voltar.
Quando a perda vai além do material, a tristeza se multiplica pela dolorosa consciência de ser irresgatável. A propósito, não há maior insensibilidade do que tentar racionalizar a dor que dói no outro.
Ficou doendo em mim o pedido de uma velhinha que resistiu em abandonar o seu casebre até o limite do afogamento, quando foi resgatada de barco e, sem tempo de recolher algum objeto de mais valor, abraçou um porta-retratos, e com ele apertado contra o peito chegou encharcada no cais, onde fez um apelo: "Seu moço, veja só o que a água fez com a única foto que eu tinha do meu velho: apagou!".
As dores que resultem desse tipo de perda, essas não se apagam. O tempo pode colocá-las para adormecer, mas nós as sabemos lá, à espreita de qualquer sacudida emocional para doerem. Outra vez e sempre.