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Com o borbulhar das redes sociais, vem ocorrendo uma hipervalorização do futebol mirim. Viralizam vídeos de garotos com fintas fantásticas, gols incríveis e embaixadinhas incansáveis.
O precoce mercado acabou atraindo a cobiça dos caçadores de talentos. Vejo um empresariado crecheiro como nunca existiu.
Toda semana pipoca um novo Neymar, um novo Endrick, uma nova mina de ouro.
Enrico, de apenas seis anos, tem chamado atenção de alguns dos principais clubes do Brasil. De saída do Flamengo, o menino virou alvo e foi enquadrado na mira de Palmeiras e Corinthians.
Tudo tão cedo, tudo tão imaturo.
Lucas Flora é outro exemplo. Com apenas 10 anos, já possui números, acordos comerciais e tratamento de gente grande. Atua no sub-11 do Corinthians e ganha cerca de 10 a 15 mil reais mensais. Inclusive, diz a lenda que o Palmeiras teria oferecido 200 mil de luvas para levá-lo ao Allianz Parque.
Hoje o clube de formação é mera porta de entrada para o sonho de brilhar na Europa.
Isso explica o desenraizamento dos atletas, o desapego de sua terra, os negócios sufocando a paixão pelo esporte.
Isso explica a falta de identificação cada vez maior da revelação com sua torcida de origem. Jamais vestirá a camiseta do time para o qual torce.
Isso explica o péssimo momento da Seleção Brasileira, repleta de nomes vivendo no estrangeiro, sem ligação com a nossa realidade.
Nenhum time do interior consegue segurar suas joias. Jamais vão estrear no profissional de onde surgiram.
Logo mais os craques serão prospectados no ventre. Já haverá olheiros reparando se os fetos andam chutando muito a barriga materna, e se batem com os dois pés.
Saímos da completa desolação, quando a base mal cobria as despesas e alcançava uma simbólica ajuda de custo, para assédios milionários e uma exploração infantil inescrupulosa.
Temos que encontrar um meio-termo, talvez inserir artifícios protetivos na legislação, para permitir que o jovem se desenvolva longe da pobreza, mas possa seguir na equipe que o acolheu.
Desse jeito, não há como competir com os poderosos, que não formam mais seus ídolos, simplesmente os arrematam dos demais no dente de leite.
Há ainda variáveis preocupantes no processo. O investimento pode gerar frustrações e amarguras. Nem sempre uma promessa vingará. Compra-se o futuro de alguém, mas ele é incerto.
Eu fico imaginando o fardo desses meninos prodígios, o peso esmagador da responsabilidade de sustentar a família inteira desde cedo.
O dom passa a ser uma prisão perpétua, uma condenação. São reféns de suas habilidades.
Se a criança quiser mudar de ideia e parar de jogar, a culpa não deixará. Se ela se interessar por áreas distintas, por carreiras diferentes, para continuar estudando, para ingressar na universidade, não terá chance diante das imensas expectativas criadas em torno de seu sucesso.
Afora que ela jamais conhecerá o que é uma infância.