Era início dos anos 2000, o bibliófilo paulista radicado em Porto Alegre Waldemar Torres inaugurava o espaço Engenho e Arte, oferecendo ao público sua biblioteca de cinco mil volumes de edições raras.
Existia uma efervescência cultural na capital gaúcha. Minha mãe Maria Carpi foi convidada para o coquetel de abertura do acervo.
Ela gostava muito da companhia de Waldemar, homem culto, atencioso, preocupado com a rotina dos escritores, influente no círculo artístico.
Enquanto ela dirigia do bairro Petrópolis ao Menino Deus, ia escutando e cantando os clássicos românticos do italiano Sergio Endrigo, vencedor do Festival de Sanremo de 1968.
Rodava o CD com as melhores canções dele: Lontano dagli occhi, Lo che amo solo te, Canzone per te, Ci vuole un fiore, Era d'estate, L'arca di Noè, Chiedi al tuo cuore, Nuove canzoni d'amore e Il treno che viene dal sud…
Fantasiava como seria conversar um dia com seu ídolo distante. Ele deveria se portar de modo sensível e metafórico, cortês e apaixonante.
Quando ecoava sua música predileta, Elisa Elisa — até porque Elisa é seu segundo nome —, chegava a chorar de alegria. Sentia que a composição havia sido criada para ela, pois traduzia seus anelos mais profundos.
Elisa elisa,
Di tanto cielo attraversato,
(De tanto céu atravessado,)
Di tante notti ad occhi aperti
(De tantas noites de olhos abertos)
Sono rimaste poche stelle
(Permaneceram poucas estrelas)
E stan cadendo ad una ad una.
(E estão caindo uma por uma.)
Ela se detinha na beleza das estrofes: estrelas caindo uma por uma. Só alguém muito especial seria capaz de dizer isso.
É necessário entender que a minha mãe é filha de italiano. Então, o idioma entra em sua corrente sanguínea sem mediação racional, com os torvelinhos da nostalgia.
Ela localizou uma vaga na frente do casarão, nem precisou gastar gasolina à toa. Tentou disfarçar a voz embargada, a emoção da cantoria, e se recompor de tanta entrega.
O encontro transcorreu na mais absoluta normalidade da alegria. Ela se divertiu com poetas amigos, aplaudiu concerto de violino e interagiu com os demais presentes até o anoitecer.
Ao ir embora, pacificada, viu o seu carro obstruído por um Porsche, que estava literalmente atravessado na frente de todos os quatro veículos na calçada. Ninguém iria conseguir sair dali.
De repente, começou a chamar os encarregados da segurança:
— Alguém me fechou, pode me ajudar?
Depois de trinta minutos, apareceu um senhor esbaforido, de topete grisalho e testa longa. Ela o conhecia de algum lugar, mas não lembrava.
Já saiu reclamando:
— Quem você pensa que é? Acha que a rua é sua?
Ele apenas falou:
— Sorry!
Ela insistiu com o sermão. Ficou realmente irritada com a soberba e falta de educação.
— Tem um rei na barriga? Não dá para agir como se estivesse sozinho no mundo.
Assim que sua ré se mostrou novamente liberada, partiu queimando os pneus, cheia de raiva da pouca empatia daquele cidadão metido a besta.
Na manhã seguinte, abrindo a Zero Hora, ela lê na capa:
“Sergio Endrigo faz show em Porto Alegre”.
Olha o rosto dele, empalidece e reconhece o motorista que bloqueou a sua passagem.
A vida nunca é como imaginamos.