
Só experimentei cabelos compridos na adolescência. Não tive chance antes.
Minha infância no final dos anos 70 e início dos 80 foi marcada por surtos de piolhos.
Hospedei o inseto e sua infindável família em três oportunidades. Jamais descobria o foco do contágio.
Lembro claramente da cena da limpeza. Eu me deitava no colo da mãe, sobre uma toalha branca estendida em suas pernas. Ela derramava álcool e ia espremendo um por um dos bichinhos com as unhas, como se fossem cravos.
O pano terminava manchado de pontos vermelhos e pretos, quase formando uma bandeira do Flamengo.
A sessão demorava horas. Quando eu saía, chegava outro irmão, até ela faxinar os fios da prole completa.
Se a infestação persistia, vinha o pior: a fumaça branca do Neocid. Não tínhamos consciência dos riscos à saúde — sua base era carbamato, assim como a do “chumbinho”.
Neocid realmente matava os piolhos, a questão é que poderia levar as crianças junto
Nos tempos prósperos, usávamos o talco do bem Johnson's. Nos tempos de piolho, usávamos o talco do mal Neocid.
O desespero não lia bula. Hoje é evidente que se trata de um veneno e que não deve ser aplicado em pessoas, mas diretamente em baratas, formigas, pulgas e percevejos.
Na época, não sabíamos. Fechávamos os olhos e o nariz para não inalar. Neocid realmente matava os piolhos, a questão é que poderia levar as crianças junto.
Havia quem recorresse a uma mistura de vinagre branco e água, ou chá de arruda, ou spray de citronela, ou óleos essenciais, como o de coco ou de árvore do chá. Ninguém na turma cheirava a xampu ou a sabonete.
Ser piolhento criava um estigma, ocasionando rejeição e exclusão na escola. Representou a lepra da minha meninice. Colegas apontavam para quem estava empestado, ofendendo e se distanciando como se fosse uma doença letal, como sinônimo de falta de asseio e higiene. A má fama durava até o fim do ano, por mais que o aluno sanasse o problema com a devida urgência. Reinavam a fofoca e a quarentena mental.
Qualquer um que servia de aeroporto dos sanguessugas se sentia sujo e impróprio.
Toda lacuna na lista de chamada gerava a hipótese de uma nova vítima. A ausência reincidente ligava o alarme da contaminação coletiva.
Como nos encostávamos no recreio nas disputas de polícia e ladrão, como vivíamos interligados na colmeia da sala de aula, dividindo apontador e borracha, não existia a mínima escapatória.
Travávamos uma ensandecida luta armada contra os piolhos.
Preventivamente, os pais passaram a cortar os nossos cabelos.
Começaram a adotar a meia cabeleira, o penteado arredondado, tesourando as franjas com o apoio de uma bacia. Às vezes, exageravam na tosa, e a testa apresentava buracos e falhas horripilantes.
Não funcionando, partiam para o estilo cadete, militar: raspavam os lados da cabeça e deixavam um murcho topete.
Não funcionando ainda, ficávamos carecas, com o couro arrepiado, à semelhança de espinhos.
Nunca fomos hippies. No lugar de Paz e Amor, travávamos uma ensandecida luta armada contra os piolhos.