O debate sobre o Obelisco Leonístico, ao operar apenas no nível estético e não político, esquece que a paródia é sempre uma força de denúncia sobre nossa condição social.
Paulo Germano (em coluna no DOC de 1º e 2 de abril) diz que o Obelisco Leonístico já é patrimônio da cidade. A definição está certa pelas razões erradas. Não se trata de um acréscimo ao suposto patrimônio público cômico da Capital, que se associa agora às "supercuias" e à "lhama'. Germano olha o leão e lembra da Torre Eiffel, eu olho e lembro da escultura Equine Form of Legend de Damien Hirst, porque ambos querem significar algo a mais. Para Hirst, o cavalo alado é a melhor manifestação da ciência e da religião como pilares da condição humana, pois representa Pegasus, encarnação da liberdade e nobreza da natureza, animal lendário que Bellerephon montou para derrotar a Quimera. Para mim, é assim com o Obelisco Leonístico, ele é a imagem simbólica mais perfeita para descrever no que se transformou a nossa sociedade: é só olhar a cara imbecil da maioria da população aos acontecimentos mais dramáticos da política atual – não é a mesma do leão estrábico produzido em série, sem alma e que ri para tudo? Esse leão não é nossa atualização do Pateta, personagem de Walt Disney?
Art Babbitt, a quem é creditado desenvolver a personalidade de Pateta, o descreveu como "alguém que nunca soube o quão estúpido ele era". Aquele "olhar apalermado" do leão da Bento não é exatamente o mesmo da sociedade por todo lado, ele não sinaliza para nossa estupidez? Movimentos em defesa da volta da ditadura militar, manifestantes que pregam "Armas pela Vida", a sociedade dócil no dia seguinte à decretação da terceirização irrestrita – a mais cruel reforma trabalhista –, que vai trabalhar no dia seguinte como se fosse um dia qualquer; este leão, ele é o espelho politicamente "apalermado" de nossos dias.
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É que leão é uma figura simbólica. É chamado de "rei da selva" porque é um guardião que simboliza poder, sabedoria, orgulho, segurança. Nosso leão, ao contrário, não tem relação com seus parentes simbólicos ou imaginários. Não é que a obra seja boa ou ruim, a questão é o significado que damos a ela. É disso que se trata: na discussão da obra no espaço público, o leão nos faz refletir sobre o impacto das artes técnicas sobre as artes plásticas, do impacto da produção industrial da arte sobre as artes tradicionais, das expectativas do uso do espaço público para bens artísticos, sempre uma discussão de quem pode pôr o que, aonde e por que, uma questão de poder.
No plano estético, a obra é uma expressão da arte kitsch em Porto Alegre, esse estilo marcado pelo inautêntico, pela pieguice, pelo caráter desnaturado e pelo estereótipo. Mas é no campo simbólico que se encontra a definição mais interessante, pois, como afirma o sociólogo Gilles Lipovetsky em sua obra A Estetização do Mundo: Viver na Era do Capitalismo Artista (Cia das Letras, 2015) "estamos no momento em que o kitsch se infiltrou em todas as facetas da criação e da decoração, do espetáculo e do lazer de massa. Na mesma hora em que proliferam os objetos high-tech, somos testemunhas da kitschização das mentalidades, dos comportamentos e dos signos do cotidiano".
Esse universo kitsch caracterizado pela corrupção da arte e do gosto não é exatamente o espelho da nossa sociedade envolta em sua corrupção, ele não está sinalizando exatamente o nosso futuro, de que com a terceirização e toda a série de reformas, de que seremos logo ali adiante todos nós, vendedores de toda a sorte de bibelôs, produtos de artesanatos diversos, joias de pacotilhas, trecos inúteis e toda a série de coisas extravagantes que o leão encarna?
O Obelisco Leonístico quer mostrar exatamente no que estamos nos transformando, ele anuncia o capitalismo...kitsch (sic!) porque só restará no futuro, para o trabalhador, sobreviver do kitsch nas ruas da cidade como hoje já fazem imigrantes, indígenas e pobres: seu valor nunca foi artístico, seu valor é ser a paródia do que estamos nos tornando, típico de uma era que vê a ascensão de valores hedonistas e individualistas se sobreporem aos ideais de solidariedade de classe.
Não se trata de que o leão é... feio, ele é o símbolo do desmoronamento de nossos valores: se seus proprietários o instalam sem sentir qualquer vergonha cultural é porque todas as estéticas já ganharam direito à cidadania, etapa de desregulamentação cultural que se segue a desregulamentação econômica, política e social em que vivemos. Não se trata da retirada de um monumento kitsch do espaço público, se trata da retirada do kitsch conformista que está sendo construído em cada um de nós.