Jornalista e professor da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (USP), Eugênio Bucci, 66 anos, é uma das grandes referências nacionais no estudo da relação entre jornalismo, comunicação, tecnologia e democracia.
Presidente da Radiobrás entre 2003 e 2007, Bucci também acumula larga experiência em redações pelo país, tendo colaborado com veículos tradicionais de mídia como Veja, Folha de S. Paulo, Jornal do Brasil e O Estado de S. Paulo. É também autor de livros como A Imprensa e o Dever da Liberdade (2009), Existe democracia sem verdade factual? (2019) e Incerteza, um ensaio (2023).
Nesta entrevista, Eugênio Bucci comenta o avanço da tecnologia no mercado da comunicação, além de analisar o crescente poder das big techs, reforçado pela posse recente de Donald Trump como presidente dos Estados Unidos, e projeta como o jornalismo pode se manter relevante para a sociedade nesse contexto de mudanças. Confira a seguir:
O que mais chamou sua atenção nas mensagens de Donald Trump durante a sua posse, nessa semana?
Queria destacar primeiro que a saudação do Elon Musk me chamou muita atenção, sobretudo porque na véspera, o Steve Bannon também fez essa saudação em um encontro mais informal, quando estava falando com representantes da AfD, o partido da extrema direita na Alemanha. Aí o Elon Musk vai e faz de novo, e ele fez duas vezes.
Em outro momento, o Trump esteve em um rito religioso, e uma bispa pede a ele que tenha piedade pelas pessoas que podem sofrer com algumas medidas, como pobres, homossexuais, imigrantes. Depois disso veio uma mensagem de Trump pedindo que ela se desculpasse por ter sido indelicada, mas ele deveria ter pedido para que Elon Musk se desculpasse por ter feito uma saudação nazista. Não cabe, na minha visão, a discussão se foi ou não foi uma saudação nazista, é evidente que foi, não há outra explicação para aquele tipo de gesto. Então, o Trump, por respeito à constituição, à tradição de direitos humanos no pós-guerra e de todos os antecessores dele, sem exceção, deveria pedir para que o Elon Musk se desculpasse por ter profanado a cerimônia de posse de um presidente dos Estados Unidos, mas ele não pediu ao Elon Musk que se desculpasse, só à bispa.
Também gostaria de fazer outras observações.
O mundo ficou sobressaltado e assustado com os sinais que vieram em razão de que ferem fundamentos da democracia.
Por exemplo, a fala de que, a partir de agora, só há dois gêneros, masculino e feminino, ofende várias pessoas que não se identificam dessa forma. Depois, a retirada abrupta dos Estados Unidos do Acordo de Paris, da OMS, também preocupa o mundo todo pelo simbolismo dessas saídas.
Além disso, a maneira como disse certas coisas na frente de Joe Biden, de Kamala Harris, do Obama, o desrespeito que manifestou, a falta de decoro em momento que é um momento de Estado, um ato oficial e não um palanque eleitoral. Também essa rispidez, essa fala violenta, sem modos, sem consideração, sem respeito, abala uma cultura de paz e respeito que é preciso observar em uma sociedade democrática. Não há como menosprezar a gravidade desses momentos.
Qual a sua avaliação sobre a presença dos bilionários chefes das big techs na posse? Revela um crescente alinhamento com os ideais representados por Trump?
Sim, é nítido, eles estão demonstrando cada vez mais o seu lado e o rumo que querem dar às plataformas. O Elon Musk, já está bem claro, está completamente dentro do governo, inclusive com cargo formal. Dias antes da posse, teve ainda aquele vídeo do Mark Zuckerberg, com uma fala anunciando que a Meta vai se alinhar com Donald Trump para combater os projetos de regulação das big techs, inclusive os que estão sendo discutidos em vários países. Ao fazer essa fala, assume publicamente que a Meta passa a ter uma inclinação ideológica expressa, o que contradiz tudo aquilo que ele falava até então, que a Meta não tinha orientação partidária, que procurava observar o equilíbrio, que era uma espécie de praça pública, mas a partir de agora passa a dizer com todas as letras que a Meta tem sim uma posição definida, e uma finalidade partidária dentro das fileiras do trumpismo.
Então, essas plataformas não são mais lugares de equidistância, de equilíbrio, que priorizam a diversidade, o respeito, a pluralidade. Estão se transformando em espaços partidários, com posições claras de seus proprietários que vão se refletir cada vez mais nos serviços. Isso tem a maior importância. O Zuckerberg disse isso com todas as letras, e a presença daquele grupo de donos de big techs na posse do Trump também simboliza isso da forma mais cristalina possível.
Como você observa esse suposto conflito que as big techs tentam impor entre liberdade de expressão, regulação das plataformas e censura?
Essa relação que tentam estabelecer entre liberdade de expressão, censura e regulação é um sofismo, uma manobra ilusionista. Isso não corresponde aos fatos, não corresponde à história, não corresponde à natureza dos instrumentos jurídicos de regulação, e leva a sociedade a uma confusão muito perigosa. Todos os setores de mercado, nos países democráticos, são regulados, e são regulados para proteger a livre iniciativa, para impedir monopólios e oligopólios. Da mesma forma, o mercado de meios de comunicação em todos esses países também é regulado e, outra vez, não é regulado para censurar, mas sim para fazer o contrário, para preservar a livre iniciativa, para preservar a concorrência, para impedir monopólios e assim impedir a censura, priorizando a pluralidade e o respeito às leis.
Esse conflito que tentam impor de liberdade de expressão versus censura nas redes sociais em razão da regulação é uma falácia, porque nos mercados regulados a liberdade que existe é maior do que nos mercados não regulados.
As big techs não querem uma regulação pública porque querem fazer uma regulação privada e opaca dos fluxos de conteúdo nos espaços que controlam, lucrando com cada vez mais engajamentos, sejam como for. Então, nós não temos liberdade aí, nós temos apenas um abuso de poder de um grande conglomerado, que inclusive permite a circulação de conteúdos criminosos, como a própria apologia ao nazismo, por exemplo. Essa é a situação que tentam impor através desse contexto, dessa ilusão de que regulação é sinônimo de censura e de que liberdade é sinônimo de ausência de lei. Isso é uma falácia. A liberdade é uma conquista da civilização e essa conquista é feita com leis, por isso que todos os mercados são regulados, sem exceção.
Como essa posição mais afirmada das plataformas e do próprio governo Trump impacta também os esforços para regulação das redes sociais em outros países, como o Brasil?
Certamente essa posição coloca ainda mais pressão em cima dos outros países que estão buscando consolidar essas regulações, principalmente na União Europeia e no Brasil. Esse tipo de manifestação se reflete como um um reforço nesses movimentos irracionais de impedir qualquer regulação que também ocorrem por aqui. Novamente, as big techs não querem a regulação porque querem poder manter nesse mercado de comunicação uma posição de liderança selvagem, autoritária, violenta, e querem também atingir os órgãos tradicionais de imprensa, que são fundamentais para sustentar a democracia. Querem promover um fluxo de sandices para estabelecer uma confusão mental na sociedade. Isso não pode ser negligenciado.
É claro que as regulações precisam de debate, que existem projetos equivocados de regulação, por isso é necessária uma discussão democrática. Um país se organiza com autonomia, por meio das suas instituições, Poder Legislativo, Poder Judiciário, Poder Executivo, órgãos reguladores, Ministério Público e assim por diante, instituições de imprensa, de ciência, as universidades, é assim que um país se organiza, debate as suas questões e encontra as melhores soluções, como é no Brasil.
Em momento nenhum eu defendo que toda proposta de regulação é boa, mas a regulação é necessária, esse é o processo democrático, mas que bate de frente com a visão dos que querem atribuir todo poder, um poder sem limites, um poder sem regulação, para as big techs promoverem qualquer tipo de conteúdo em suas plataformas, sejam conteúdos criminosos ou não. Isso cria um ambiente de selvageria generalizada.
Esse é o caminho para uma "era da desinformação", conceito que você já trabalha há algum tempo?
Sim, exatamente. É esse o projeto que querem impor, uma transição de uma era da informação para uma era da desinformação. E a desinformação é muito danosa, leva a sociedade a um nível de entorpecimento e de desconhecimento do mundo muito perigoso, que possibilita a instrumentalização da população de acordo com os interesses de quem promove essa desinformação em massa. Com esse fluxo intenso de produção de desinformação, nós perdemos as capacidades cognitivas coletivas, uma sociedade perde todos os recursos para disciplinar a vida social, prevenir a eclosão de conflitos, de estabelecer programas duradouros em políticas públicas para promover bem-estar, progresso, prosperidade. Tudo isso fica comprometido, só o que triunfa é o caos.
Como o jornalismo profissional pode se manter relevante e impactante para a sociedade nesse contexto?
Essa é mesmo uma missão muito difícil, porque o jornalismo tem que lidar com crises sobrepostas. Primeiro, há uma crise que veio da acelerada mudança do padrão tecnológico. As empresas jornalísticas perceberam tarde as evoluções digitais e ainda lutam para se adaptar de forma adequada para conseguir tirar vantagens que essa evolução pode proporcionar. Essa mudança de padrão tecnológico acarretou um abalo nas receitas do modelo de negócio do jornalismo, especialmente do jornalismo como empresa privada, pois muitos dos anunciantes foram embora para anunciar exatamente nas plataformas, e essa perda de receita foi muito impactante para os veículos tradicionais de imprensa. O que eu sempre gosto de apontar também quando falo desse assunto é que há ainda uma crise de pensamento. As redações, atingidas pela aceleração das novas tecnologias, da drenagem de recursos e de receitas, foram se esquecendo de que são núcleos de pensamento, muito mais do que apenas uma força-tarefa de fechamento. As redações precisam pensar, precisam ter uma visão de mundo, precisam ter ângulos originais próprios. Um jornal é uma referência pensante, não é um simples entregador de conteúdos. E no momento em que as redações deixam de se ver como centros de pensamento, vão perdendo o contato com o melhor serviço que poderiam prestar à sociedade. Isso nos afasta do diálogo que as redações precisam ter com a população, e é um serviço absolutamente essencial para a sociedade, a gente vê isso com ainda mais clareza em crises agudas como a da pandemia, quando foi necessário o combate à desinformação contra as vacinas, por exemplo, ou mesmo durante a tragédia climática no Rio Grande do Sul no ano passado, trazendo informação apurada sobre demandas por doação, necessidades de apoio do poder público à sociedade, etc.
Como podemos assegurar que esse serviço seja mantido e reforçado? Uma possibilidade poderia ser a implementação de programas que fomentem as redações profissionais, seja subsidiando assinaturas, seja financiando modernização tecnológica das redações, formação de profissionais. Em muitos lugares, o incentivo público é fundamental para o exercício da imprensa.
Além disso, a regulação das mídias sociais também pode favorecer a imprensa, porque tudo aquilo que favoreça o contato da sociedade com as verdades factuais, favorecerá a imprensa profissional.
O que você destacaria como um aspecto essencial à atuação da imprensa, que deve ser reforçado nesse contexto de avanço de novas tecnologias e crescimento do poder das big techs?
Poderia responder essa pergunta de diferentes formas, mas acredito que a essência institucional da imprensa, que está em seu DNA desde que foi inventada, é olhar criticamente para aqueles que exercem o poder sobre a sociedade e informar o cidadão com independência e qualidade, para que o cidadão consiga formar a sua própria visão da realidade de forma autônoma e esclarecida. A liberdade de criticar o poder em público é constitutiva do que nós chamamos de liberdade de imprensa. Eu diria que isso está na essência da instituição da imprensa e, no caso do nosso momento, vai muito além de ser crítico em relação ao governo Lula ou de ser crítico em relação ao governo Trump. Isso exige da imprensa que saiba identificar os liames entre o monstruoso poder econômico que vai se construindo a partir da era digital e as formas autoritárias obscurantistas de poder que querem exatamente, e isso está claro hoje, desmantelar o Estado democrático de direito. A imprensa tem o dever de enxergar essas coisas e de dar vazão para o direito à informação do cidadão. É isso que eu identificaria como um aspecto essencial, mas há outros também que poderia listar para complementar, mas nesse momento eu acho que a liberdade de criticar o poder em público para informar o cidadão de modo que o cidadão consiga formar a sua opinião e a sua visão das coisas com autonomia é o que está mais em xeque.
Entre as novas tecnologias, outra preocupação que desponta é a rápida evolução da inteligência artificial (IA). Como você encara a crescente presença da IA na sociedade?
Gosto de separar esse assunto em duas abordagens. A primeira perspectiva é enxergar a inteligência artificial como mais uma ferramenta de tecnologia, ainda que muito poderosa. E aí é preciso usar essa ferramenta eticamente, dentro de parâmetros legais. Há tempos já existem ferramentas que podem adulterar imagens fotográficas, por exemplo, muito antes de inventarem o Photoshop, já era um uso condenável, com um procedimento de falsificação da linguagem. Então, nas redações, o uso da inteligência artificial pode ser compreendido nessa primeira abordagem, a partir da boa ética da profissão, como uma ferramenta, pode contribuir de forma positiva para a produção jornalística.
Pra mim, o problema da inteligência artificial está em outro plano de consideração, que é um plano que precisa se perguntar sobre uma tecnologia que consegue tomar certas decisões. Uma tecnologia que consegue fazer da máquina um sujeito falante, um organismo que usa a linguagem, que entra na linguagem humana. A partir disso, temos aí um plano de discussão que abrange um horizonte muito mais largo, que abraça toda a história da civilização. O que será da civilização humana se as máquinas de fato forem sujeitos de linguagem? O que acontecerá se um algoritmo ou um concentrado de algoritmos puder substituir funções judiciais?
Aí nós temos uma questão civilizacional, que a técnica chegou a um ponto que fala, que é sujeito de linguagem, não é mais só o humano que é sujeito de linguagem, e que com sua programação própria pode sim seguir um curso totalmente à margem de considerações morais.
Esse problema está colocado para toda a sociedade, é a maior ruptura tecnológica jamais vivida pela humanidade, e está apenas no começo, pois a velocidade de transformação será maior a cada dia.