
Meu adormecido lado noveleiro despertou animado para a nova versão de Vale Tudo. Fui espiar o primeiro capítulo, naquela de comparar com a original estreada em 1988, e claro que fui fisgado. Não foi à toa que a Rede Globo, na comemoração de seus 60 anos, apostou no remake dessa trama em especial. Público e crítica há tempos concordam que Vale Tudo foi a melhor novela já feita no Brasil, tanto por seus méritos dramatúrgicos como pela relevância cultural. Afinal, nunca antes, e nem depois, o Brasil mostrou na telinha suas dores e suas delícias em tantas nuances.
Já gostei que não ousaram mudar a trilha de abertura, em que Gal Costa brada os versos de Cazuza: “Brasil / Mostra tua cara / Quero ver quem paga / Pra gente ficar assim”. Criada por Gilberto Braga e escrita junto com Aguinaldo Silva e Leonor Bassères, Vale Tudo foi ao ar num momento histórico crucial para o futuro do país. Era tempo de redemocratização após a ditadura militar, uma nova Constituição estava sendo elaborada, os eleitores logo poderiam votar de novo para presidente. Cabia, portanto, questionar, ao sabor de uma envolvente narrativa folhetinesca, que país era aquele e que ética o guiava.
O Brasil do jeitinho malandro e da alta corrupção, das elites arrogantes e da luta pela sobrevivência tentava se passar a limpo. Valia a pena ser honesto para vencer na vida? A partir do conflito central entre mãe e filha, a correta Raquel e a arrivista Maria de Fátima, a novela desvelou velhas chagas da alma brasileira em meio a personagens inesquecíveis, como a prepotente Odete Roitman. Vale Tudo foi exemplar na costura da essência do folhetim televisivo — as relações e os segredos de família — com temas mais amplos a pautarem debates na mídia e na sociedade. Um merecido sucesso.
Mas será que recriar essa fórmula — agora pelas mãos da ótima Manuela Dias — será garantia de repetição do estrondo original? Eis o mistério. Segundo a marcação de audiência que apura quem vê a novela na hora de exibição na tevê aberta, Vale Tudo não agregou muito mais público se comparada à novela anterior, a fraca Mania de Você. Mas é cedo para avaliar. O certo é que não basta apenas o texto excelente e já testado da novela e nem mesmo um ótimo elenco para agradar ao público. A mesma Vale Tudo já resultou em enorme fracasso quando ganhou uma versão voltada à comunidade hispânica dos Estados Unidos, em 2002.
Será que a força de Vale Tudo deveu-se mais ao espírito da época do que à sua dramaturgia? Se assim for, como explicar a boa audiência sempre que a novela é reprisada, o que já se deu três vezes? Ok, como obra de culto, sempre haverá um público fiel a prestigiar novas exibições. Creio que o borogodó dessa novela vem, sim, do espelhamento de seu tempo, além de seu engate com questões profundas da identidade brasileira. Se cruzarmos o mapa celeste da estreia da novela, em 16 de maio de 1988, com o mapa do Brasil como país, veremos conexões que costumam assegurar sintonia plena entre as partes. A Lua da novela, por exemplo, estava conjunta à Lua do Brasil, em Gêmeos.
A Lua do país, em conjunção com Júpiter, o astro das leis e dos valores morais, indica uma cultura que enfatiza os afetos e, talvez por isso mesmo, resulta frágil em questões éticas. Ora, afetos e ética foram o mote da trama da novela. No entanto, o mais curioso entre os mapas da novela de 1988 e o da atual é a repetição da conjunção entre Saturno e Netuno. Ou seja, outra vez agora, o país revive um clima de dissolução e reconstrução. Para onde vamos como nação?
Manuela Dias é esperta, já soube atualizar a trama a partir dos avanços sociais — na primeira versão, só havia dois negros no elenco; agora, as próprias protagonistas são negras. Estou curioso para saber como o atual Brasil, convulso e dividido, vai ou não se reconhecer no tradicional espelho da novela das nove.