Meus olhos são convidados a inaugurar o dia todos os dias. O vento da manhã nos diz que tudo é vivo e participa continuamente da criação. Interesso-me cada vez menos pelas grandes especulações metafísicas. Quero é estar com quem gosto, partilhando o pão e o maravilhamento que é estar com a alma e as vísceras perfeitamente saudáveis. Leio páginas avulsas de filosofia, fragmentos de poemas, para não deixar que a sensibilidade enferruje. Mas aprecio mesmo é sair às ruas, sentir o perfume do instante que morre assim que o percebo. Marco Aurélio e Sêneca, meus mestres espirituais, refletiram sobre o esquecimento. Ocupamos este planeta brevemente, como tudo o mais, mas temos a obrigação de acolher a felicidade e permanecer atentos. Carregamos uma bagagem de memórias que nos sustentam quando tudo parece outonal, pronto para pertencer novamente à terra. São elas que nos ligam à cadência do eterno. Quase não frequento templos e minhas orações não são ritualísticas. Mas deixo o coração se vergar diante de qualquer manifestação de afeto. Na casa da amiga Maria de Fátima, uma doce mineira que enche minha vida de sabedoria e delicadeza, há uma pequena placa que diz: “Ao menor sinal de amor, retribua.” Ah, se soubéssemos por isso em prática, quantas dores perderiam a possibilidade de nascer.
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Sei que sou um homem afortunado, pois me alimento de arte e beleza. Desde cedo aprendi a cultivar com reverência o outro. Sozinho nada sou. Sempre que me chamarem, irei. Aprendo com pequenos gestos, com palavras que não carregam uma significação transcendente, mas que, ditas por quem me é caro, se transmutam em ouro. Quero ser ético na mais pura gratuidade. Se possível, escondendo de mim mesmo qualquer ato de altruísmo. O escritor francês Pierre Hadot pondera: “A bondade pressupõe um desinteresse total, deve ser de certa forma espontânea e irrefletida, sem o menor cálculo, sem a menor autocomplacência.” O que é dito em voz alta, nos púlpitos, aproxima-se mais da vaidade do que da religião. Não sou dos primeiros a saber das notícias do mundo. Aqui, neste canto que habito, faço minha parte plantando petúnias, gerânios, jasmins. Trato com gentileza gentes e animais. Participamos todos desse projeto de consciência que talvez continuaremos sem saber a que se destina. Entregar-se ao mistério é também uma maneira de orar. Tento cultivar hábitos de respeito e atenção até que se tornem perfeitamente naturais. Escolho as pessoas com as quais convivo, pois sei que somos inclinados a copiar exemplos, bons ou ruins. Não esqueço que é um alento caminhar livremente pelas paisagens que aprecio. Até aqui o corpo raramente me traiu. Trato com reverência, agredindo-o o mínimo possível
Sorvo cada minuto como se fosse o último. Quero colocar roupa de festa antes de ler Adélia, Clarice, Drummond. Ando buscando a quietude, fazendo um bolo a cada sábado, olhando todas as noites para o céu. Vem de longe essa vontade de agradecer.