Visitando uma exposição de artes plásticas, digo para minha amiga: Observe esses tons alaranjados em contraste com os verdes. É de uma beleza comovente. Vejo que ela se aproxima excessivamente do quadro, a ponto de seus olhos quase tocarem a tela. E me diz: é realmente maravilhoso. Só então me dou conta: sua visão é de apenas quinze por cento e não distingue as cores, vê tudo em preto e branco. Sua atitude diante da vida é tão afirmativa que constantemente esquece (esquecemos) desses seus limites. Uso inadequadamente esta palavra, e a prova é que raramente me lembro disso e converso como se a minha paleta e a dela fossem iguais. Paro um instante e ouço com mais atenção a sua fala generosa e exuberante. Nenhuma queixa, nenhum ressentimento, apenas a vida seguindo com suas possibilidades expandidas ou acanhadas. Tenho ao meu lado um ser humano que soube explorar com coragem e sabedoria uma situação que, a muitos, poderia paralisar. Mais: poderia auferir disso um sentimento de compaixão, exigindo que a percebessem como uma pessoa maltratada pela existência. O que constato, no entanto, é que é possível recusar o papel de vítima mesmo quando nos é cobrado um desempenho de excelência dispondo de menos recursos do que a maioria tem.
Numa época tão carregada de direitos, em que todos cobram da família, dos amigos, do Estado, de Deus, regalias que a natureza nem sempre parece disposta a prover, é preciso parar e fazer algumas ponderações. Considerar a falta, a escassez, a carência como elementos que compõem a nossa trajetória. Nem todos são regalados com saúde, beleza e inteligência. Temos que aprender a nos arranjar com o que nos foi oferecido. Exigir a perfeição é sonhar com a eugenia, a purificação. A história nos mostra como isso pode terminar mal. Quanto mais cedo precisarmos atravessar alguma parede, algum muro, mais chance teremos de fortalecer o nosso caráter. Hoje parece que as crianças já cobram dos pais a benesse de ir se desenvolvendo em campo privilegiado. E ai daqueles que ousarem questionar uma regra de ouro inventada por eles mesmos: a do mérito. Enquanto o corpo usufrui de todas as benesses proporcionadas pelos avanços da medicina, da ciência e do conforto material, a mente sofre uma sutil deformação, impedindo-nos de ver a beleza das coisas comuns. Essas que conduzem aos encontros, aos abraços, à gratidão.
Menos queixas, por favor. Nunca tivemos tanta liberdade e tanto acesso ao conhecimento, o que nos permite transitar em quase todos os espaços. Se aqui ou ali formos confrontados com outros que dispõem de mais do que nós, melhor acessar a aceitação do que a raiva, o ressentimento. De alguma maneira, a balança sempre encontra o seu equilíbrio.
Pensando bem, minha amiga consegue ver múltiplas tonalidades. Talvez mais do que eu e você.