Quais os sonhos, esperanças, medos, tragédias e ressignificações nos movem? A vida em suas múltiplas facetas todos os dias nos joga ao encontro da realidade e nela, precisamos aprender a sobreviver. Mas talvez ainda mais que isso, precisamos aprender a viver, a sonhar, a continuar acreditando apesar de todas as dificuldades.
No último domingo, dia 27 de abril, relembramos um ano do início das enchentes no RS. Todos nós gaúchos, a seu modo, guardamos um fragmento daquele dia que virou memória coletiva. Todos fomos impactados pela força das águas, pela natureza, pelo assombro da descoberta de como somos pequenos diante do mundo e da capacidade de trabalho e solidariedade, imensas, entre estranhos. Aqueles dias foram marcados por paradoxos.
Escrevo estas linhas e me comovo ao relembrar. As cenas que tanto nos impactaram de pessoas ilhadas, pedidos de socorro, animais empoleirados em telhados, casas completamente destruídas, soterramentos, deslizamentos de toneladas de terra arrastando tudo que encontravam pela frente abrem em cada um de nós uma cicatriz ainda não fechada completamente. Todo nosso Estado sofreu naqueles dias. Uns foram atingidos diretamente, outros menos, mas nenhum de nós saiu ileso da tragédia.
Lembro de sair do consultório no fim do dia e a chuva açoitar as janelas do prédio e depois do carro. Um chuva estranha, pesada, insistente. Mandei uma mensagem para casa avisando que me atrasaria por conta do trânsito, mas não imaginei que ficaria ilhada, com a água subindo rápido e me trazendo um certo pânico de que o carro pudesse parar e ter de abandoná-lo. Lembro que o trânsito ficou interrompido e a água subindo rápido na rua. Olhei para outras possíveis vias de saída, numa tentativa de encontrar uma rota de fuga, mas não havia. Era preciso se acalmar e seguir lentamente em meio ao caos que estava só iniciando. Que chuva era aquela? Depois de muitas manobras, consegui chegar em casa e o desejo era esse, chegar em casa, como se somente ali fosse seguro. A chuva não parou mais. Muitos de nós ainda guardamos um certo medo do barulho da chuva. Os dias e as notícias foram nos contando do que estava acontecendo.
As águas trouxeram morte, medo, dor, perdas. Arrastaram rio abaixo histórias, terra, animais, casas. Em poucos dias as pontes foram destruídas, paisagens desmanchadas, cidades desapareceram. Um grande rio tomou conta dos espaços.
Todos sofremos com o que nos aconteceu, mas as meninas e as mulheres ainda mais, pois em meio a tragédia ocorreram abusos e estupros, como se o ser humano não medisse esforços para mostrar o pior de si em qualquer momento. Um desnorteamento.
Uma água descontrolada desmanchou o real, mas hoje, um ano depois, em que muito já fora reconstruído, faz-se necessário repensar nossa relação com o meio ambiente. As mudanças climáticas estão aí e precisamos fazer a nossa parte. Embora isso seja tão utópico.
Simbolizar as perdas que nos atingem é parte do processo de voltar a sonhar, mas será que estamos prontos para sonhar coletivamente ou uma tragédia foi pouco para nos tocar?