Lembro quando o asfalto chegou à rua da nossa casa. Meus pais, felizes, comemoraram o fim da estrada de terra e cascalho, podendo aposentar as horas de tiração de pó sobre os móveis e os velhos espanadores de pena. Já eu tive de encarar minha primeira derrota na vida. Aquele betume escuro trouxe um trânsito mais intenso e acelerado. Tive de abrir mão do carrinho de lomba e muito rapidamente aprendi que ralar os joelhos, ao cair da bicicleta, era muito mais dolorido no asfalto do que no chão batido. Aos poucos a rua foi se transformando em um perigo a ser evitado. Já não era mais o ponto de encontro depois da escola, em que andávamos chutando as pedras e imaginando o que iríamos brincar depois dos temas feitos.
É claro que escrevo este texto e ele guarda um tom nostálgico daqueles tempos. Não pelas brincadeiras, porque fiquei velha demais para brincar, aliás morro de medo de cair e quebrar algum osso. Mas porque a rua perdeu completamente o sentindo antropológico e humano de conectar lugares e pessoas. Não consigo compreender como os carros passam a altas velocidades em ruas que ficam dentro de bairros. Ruas estreitas, sem quebra-molas, que funcionam, ainda, como as veias de uma comunidade, em que pessoas de todas as idades circulam por elas.
Agora em abril faz 12 anos que fui atropelada. A sinaleira estava fechada para os carros e eu estava na faixa de segurança. Carregava uma sacola cheia de livros, que segundo o médico, foi o que me salvou de ficar quicando pelo asfalto após ser arremessada pelo carro que me pegou. Lembro bem do dia, pois estava correndo para finalizar a declaração do imposto de renda. A cabeça cheia de pensamentos e a preocupação de organizar todos os documentos necessários. Mesmo assim, o senso de responsabilidade me dizia que precisava me proteger dos carros. Não adiantou muito, porque o carro que me acertou atravessou o sinal vermelho. Não tenho muita memória do momento do acontecido. Lembro de me ver sobre o carro, batendo a cabeça no vidro, mas não lembro da dor. Depois apaguei. Acordei aos poucos com muitas pessoas em cima de mim. Alguém gritou “ela abriu os olhos”.
Costumo contar este fato e dizer que sim, abri os olhos e vi o céu azul, de um azul tão lindo. Na sequência escutei a sirene da ambulância vindo e pensei “é pra mim”. Aos poucos a consciência do momento foi voltando e a primeira coisa que minha mente fez foi cantar um trecho da música Construção do Chico Buarque “flutuou no ar como se fosse pássaro, e se acabou no chão feito um pacote flácido, agonizou no meio do passeio público, morreu na contramão atrapalhando o trafego”.
Não morri e apesar do susto, não me senti derrotada como no tempo da infância. Mas descobri que para morrer basta estar viva. Tudo aconteceu rápido demais e a dor só apareceu no dia seguinte, quando a adrenalina baixou e mal conseguia me mexer. De lá para cá me tornei uma pessoa lenta. Mas não é nada fácil ser assim, então sim, lamento profundamente a chegada do asfalto.