Todos deveríamos ter o direito a uma boa morte. Um dia, todos vamos invernar. Talvez a doença seja a primeira estação desta temporada. Adoecer é cair dentro de uma malha do mundo cotidiano, que às vezes se abre bem debaixo de nossos pés. Quando estamos doente ou alguém querido adoece tão profundamente, é como se fossemos transportados a um outro lugar. Um lugar em que o ritmo é diferente do aqui e do agora, em que se tem a impressão de que todas as outras pessoas seguem em frente, menos você. Este outro lugar é onde os fantasmas vivem, escondidos da vista no dia a dia.
O medo, o desamparo, a angústia ganham corpo e nome e nos assombram. Neste outro lugar, que podemos chamar de espera, opera em delay, de modo que não conseguimos mais acompanhar o ritmo dos outros. Aos poucos, a sensação é de que estamos ficando para trás. Então nos damos conta de que o inverno começou.
Invernar é um passar por uma temporada no frio. É um tempo em que estamos isolados do mundo, às margens da vida. É como se estivéssemos em transição e acabamos caindo entre dois mundos. Alguns invernos se arrastam longamente, acompanhando a morte prolongada do corpo.
Sabemos que estamos neste entremeio porque as responsabilidades aumentam, os cuidados dobram e sentimos que envelhecemos anos em meses. Aos poucos, sentimos o pinga-pinga da confiança perdida. Outros invernos são repentinos. De toda forma, invernamos de modo involuntário, sozinhos e descobrimos que é profundamente doloroso.
É inevitável. Gostaríamos que a vida fosse um eterno verão, de dias claros e quentes. Como se a vida pudesse ser um habitat equatorial, sempre perto do sol, vivendo de modo imutável. Mas a vida não é assim. Os verões também podem ser sufocantes. Não temos controle sobre nossos corpos, nossa saúde, nosso envelhecimento. Jamais poderemos evitar o inverno.
Tenho aprendido na vida e com meus pacientes a encarar o inverno. Dar-se conta do próprio inverno, sua largura, comprimento, peso, é fundamental. Não fomos educados para falar de morte e nem para reconhecer nossos invernos. Geralmente, diante dele, assumimos uma postura pública corajosa e sofremos sozinhos, fingimos não ver a dor dos outros e tendemos a não reconhecer nossas próprias dores. Tratamos a morte, o inverno, como uma anomalia embaraçosa, que deveria ser escondida ou ignorada.
Precisamos aprender a acolher o inverno. Nunca poderemos escolher quando iremos invernar, mas podemos escolher como fazê-lo. Por isso, é urgente se pensar, eticamente, na possibilidade de se viver uma boa morte. A nossa medicina é muito arcaica e tem o foco na doença. Deseja-se curar a qualquer custo, mesmo que isso mate o paciente. Perdeu a humanidade e o reconhecimento de quando o corpo cansou e precisa apenas não sentir mais dor. A busca pela cura incessante é cruel demais.
A morte também pode ser um lugar quente e aconchegante. Mas para isso é preciso amor e respeito.