Não sou lá muito fã de Pablo Neruda, mas recorro a ele para escrever esta crônica de quase Natal. Em um de seus versos ele diz que há feridas que não rasgam apenas nossa pele, mas abrem nossos olhos. Olhar para aquilo que dói, machuca, é fundamental, além de inevitável. Freud fala do processo de negação, aquele sentimento que temos quando não conseguimos acreditar que de fato, algo de muito ruim aconteceu conosco e teremos de, em algum momento, olhar de frente. Enquanto negamos, nos auto iludimos achando que nos protegemos. É muito difícil admitir que nos enganamos, que erramos, que colocamos nosso carinho e atenção em algo ou alguém que acabou nos machucando.
Neste período em que nos reunimos com amigos e familiares a angústia tende a aumentar, ainda mais porque sabemos que encontraremos com aquelas pessoas que não poupam as críticas nem os julgamentos. Pessoas que se acham no direito de dizer o que pensam sem nem ao menos ponderar se o outro vai se ferir ou não com as atitudes ou palavras. Era para ser um encontro bonito, alguns até conseguem. Descobriram que não precisam chegar cedo e que podem sair antes. Ou criaram um mecanismo interno de defesa desplugando das conversas e fingindo não ser consigo ou fazendo de conta que não escuta as discussões. Discussões estas que tendem a se acalorar depois da segunda taça de espumante. É impressionante como basta 15 minutos de convivência para se perceber o quanto somos muito diferentes uns dos outros, mesmo tendo o mesmo sangue correndo nas veias.
Se estar com a família é algo que causa sofrimento e ansiedade, não é diferente entre os conhecidos. Quantas vezes em nome da amizade se escutou coisas que nem deveriam ter sido ditas ou se presenciou gestos que não deveriam ter sido feitos. A convivência, verdade seja dita, é pesada. Mas é na intimidade que descobrimos quem o outro é, bem como a nós mesmos. É ficando muito perto que percebemos o quanto somos chatos, mal humorados, rabugentos e implicantes. Às vezes o outro somos nós. Somos nós que passamos da medida. Sentir raiva em meio ao espírito natalino é inevitável. Muitos acabam comendo a ceia de modo tão angustiado que a comida faz mal. Outros chegam silenciosos e saem chorosos. Há os que bebem um pouco a mais, afinal, só o álcool para anestesiar o momento.
Sim, era para ser um momento de alegria, de reencontro. Às vezes é. Mas na maioria, tirado o véu da ilusão, reuniões de família em datas comemorativas tendem a causar muita dor e sofrimento. Um misto de tristeza e melancolia. Invoco Freud mais uma vez, porque ele foi genial em vários aspectos, entre eles o fato de que a família é a causa das nossas neuroses. É preciso entender que não é sobre o conceito que se articula, mas sobre os membros que a compõem. As expectativas se misturam às frustrações. Mais uma vez.
Daí o verso de Neruda, relembrado logo ali acima, faz sentido. Algumas feridas servem para que possamos abrir nossos olhos e escolher de que forma desejamos viver o Natal. E com quem.