O Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) é proprietário de 19 imóveis sem uso somente em Porto Alegre. Entre os bens, há prédios, um andar inteiro de grande edificação, lotes, glebas e apartamentos. As posses estão espalhadas desde o Centro Histórico até bairros populares, como Passo d’Areia, Floresta, Santa Tereza, Partenon, Vila Safira e Camaquã. Estimativa de urbanista consultado pela reportagem aponta que, se as propriedades fossem reconvertidas em edifícios para habitação de interesse social, poderiam ser assentadas até 5.413 pessoas (leia mais abaixo).
Dez dos imóveis que compõem o patrimônio estão sob ocupações irregulares, algumas delas com alta densidade de moradias, formando vilas. Outros nove, além de estarem sem uso pelo proprietário, o INSS, também estão vagos. Os dados foram obtidos pela reportagem junto ao órgão federal via Lei de Acesso à Informação (LAI).
O mais conhecido dos imóveis inutilizados é o prédio em que já funcionou uma agência do INSS na Travessa Mário Cinco Paus, no Centro Histórico, no entorno do Mercado Público e da Praça Montevidéu. O edifício de 26 andares, após anos de inatividade, está desde junho de 2024 sob ocupação do Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST), que negocia com o governo federal a destinação do imóvel para programa de habitação social, preferencialmente a modalidade entidades do Minha Casa, Minha Vida.
Um dos entraves para as negociações foi destacado pelo INSS na resposta via LAI: todos os 19 imóveis de propriedade do órgão, mesmo em desuso, compõem o Fundo do Regime Geral de Previdência Social (FRGPS). É o instrumento em que ficam resguardados todos os ativos do INSS, como imóveis, móveis, liquidação de bens de pessoas físicas e jurídicas em débito com a Previdência e a receita das contribuições sociais. A finalidade do fundo é garantir recursos para pagar os benefícios do regime geral da previdência, sendo a aposentadoria o principal deles.
Em consequência disso, para que qualquer imóvel do INSS possa ser destinado a programas de habitação social, o FRGPS deve, por força de lei, ser ressarcido pelo valor de mercado correspondente. Somente no caso do edifício da Travessa Mário Cinco Paus, o INSS informou, em junho de 2024, que o custo do bem era de R$ 58,8 milhões. Para os demais imóveis, o órgão respondeu não dispor de avaliações atualizadas.
Ainda no Centro Histórico, chama atenção a propriedade do INSS de um andar inteiro, com mais de 800 metros quadrados, sem uso e vazio, na Travessa Francisco Leonardo Truda.
Dentre terrenos urbanos em Porto Alegre, o instituto é dono de oito lotes (porção de área maior que foi parcelada) e três glebas (área de terra não loteada), algumas delas de consideráveis extensões. Três estão vagas e oito ocupadas por comunidades populares.
A Vila Maria, formada por cerca de 80 famílias, fica em um dos terrenos ocupados do INSS no bairro Camaquã, na Zona Sul. Entre 2021 e 2023, o diretor-geral do Departamento Municipal de Habitação (Demhab), André Machado, negociou junto ao órgão a regularização fundiária da comunidade, mas não houve acordo.
— É uma área não operacional do INSS, mas eles diziam que faz parte do fundo (FRGPS) e só aceitavam vender. O município não queria comprar, queria regularizar, como faz nos lugares onde há concordância do proprietário. Não avançou — comentou Machado.
A Vila Maria segue como ocupação, o que cria obstáculos para a realização de investimentos públicos e a cobrança por serviços.
Habitação para até 5,4 mil pessoas
Em exercício hipotético, com o objetivo de estimar o potencial das propriedades do INSS para a geração de moradia popular, o urbanista Benamy Turkienicz, professor titular da Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), fez cálculos aproximados que atribuíram 19,74 hectares aos imóveis em desuso.
Em projeção conservadora, considerando a alocação de 150 habitantes por hectare, seria possível construir casas térreas ou providenciar a regularização fundiária de pelo menos 2.961 pessoas nas posses do INSS, afirma Turkienicz. O quantitativo é considerado expressivo pelo urbanista.
Dados do último Censo indicam que o déficit habitacional de Porto Alegre é de 31.783 domicílios. Como a média de moradores por domicílio ocupado é de 2,37, a cidade teria um déficit habitacional de pelo menos 75,3 mil pessoas. O potencial de assentar 2.961 habitantes nas propriedades do INSS representa 3,93% do déficit.
Comum aos grandes centros urbanos brasileiros, o problema da habitação se tornou mais agudo em Porto Alegre no pós-enchente, quando famílias perderam casas.
— Boa parte das glebas e lotes do INSS fica em áreas da cidade densamente ocupadas por faixas de renda média para baixo. Caberia a reconversão para habitação econômica de interesse social. Esse é o primeiro prejuízo: uma instituição como o INSS, por natureza de cunho social, não está dando destino para imóveis em regiões urbanizadas, com serviços públicos e infraestrutura — avalia Turkienicz.
Contudo, das 11 glebas e lotes de propriedade do INSS, cinco possuem alguma restrição, sendo classificadas como área verde ou mesmo de risco. Todas as quatro áreas marcadas como de risco estão ocupadas por habitações — como é o caso da Vila Maria.
Excluindo os terrenos com restrição, o potencial habitacional em casas térreas nas posses do INSS atenderia 1.804 pessoas, equivalente a 2,40% do passivo. Turkienicz alerta que o número de moradias poderia, no mínimo, ser triplicado em caso de opção pelos apartamentos, em edifícios de três a quatro andares, nos lotes e glebas sem restrição. Nessa hipótese, considerando 450 habitantes por hectare, referência recorrente nos empreendimentos populares, poderiam ser atendidas 5.413 pessoas, equivalente a 7,1% do passivo estimado da cidade.
Além de não atacar o déficit habitacional, o desuso de imóveis públicos costuma ampliar o quadro de degradação urbana, com pichações e estilhaços de vidraças.
— As invasões são decorrentes da falta de destinação. O mais urgente é a destinação dos imóveis públicos vazios, priorizando projetos de habitação econômica de interesse social — opina Turkienicz.
INSS afirma ter interesse na destinação social
O INSS se manifestou por escrito e assegurou que não é de seu interesse manter as posses, que geram custos de manutenção, embora esteja atado pela burocracia. O órgão informou que uma portaria de fevereiro de 2021 determinou a transferência da gestão dos imóveis do FRGPS para a Secretaria de Coordenação e Governança do Patrimônio da União (SPU). A propriedade continuará sendo do INSS, mas a gestão sobre o que fazer com as posses está em processo de transição para a SPU, o que ainda não foi concluído.
O instituto informou que está impedido de leiloar o patrimônio enquanto a gestão dos bens não estiver definitivamente transferida à SPU. Até lá, só é permitida a venda direta dos imóveis para outros órgãos federais. “Doação ou cessão também não são permitidas devido à vinculação ao fundo do regime geral”, respondeu, em nota, o INSS.
O órgão acrescentou: “Atualmente, existem iniciativas em andamento que visam a utilização de imóveis públicos em benefício da sociedade, incluindo a destinação de bens do INSS para fins de habitação social. Dentre essas ações, destacam-se o Programa de Imóveis Minha Gente e o Programa de Democratização de Imóveis da União, ambos sob a responsabilidade da SPU. O INSS está devidamente autorizado para participar dessas iniciativas e aguarda as providências necessárias por parte da SPU do Rio Grande do Sul, que é a entidade responsável pela implementação e gestão do referido programa. Essas ações representam alternativas viáveis e em debate para a resolução do déficit habitacional.”
Existe uma novidade destacada pelo INSS para as glebas e lotes densamente ocupados por famílias de baixa renda. Nesses casos, uma legislação, ainda pendente de ajustes legais entre órgãos da União, permite a transferência da propriedade ao município a custo zero para a regularização fundiária de habitação popular. Nos demais casos, continuará sendo obrigatório o ressarcimento ao FRGPS.
Lista dos 19 imóveis do INSS sem uso em Porto Alegre
Prédio na Travessa Mário Cinco Paus, no Centro Histórico
- Área do imóvel: 22.059 metros quadrados
- Situação: ocupado pelo MTST
10º andar de prédio na Travessa Francisco Leonardo Truda, no Centro Histórico
- Área do imóvel: 828 metros quadrados
- Situação: vago
Pavimento em prédio na Avenida Alberto Bins, no bairro Floresta
- Área do imóvel: 704 metros quadrados
- Situação: vago
Sala em prédio na Rua dos Andradas, no Centro Histórico
- Área do imóvel: 37 metros quadrados
- Situação: vago
Prédio na Avenida Moab Caldas, no bairro Santa Tereza
- Área do imóvel: 356 metros quadrados
- Situação: densamente ocupado
Apartamento no bairro Cavalhada
- Área do imóvel: 54 metros quadrados
- Situação: vago
Apartamento no bairro Camaquã
- Área do imóvel: 65 metros quadrados
- Situação: vago
Apartamento no bairro Cavalhada
- Área do imóvel: 80 metros quadrados
- Situação: vago
Lote no bairro Passo d’Areia
- Área do terreno: 1.851 metros quadrados
- Situação: vago
Lote na Rua Paulino Azurenha, no bairro Partenon
- Área do terreno: 18.237 metros quadrados
- Situação: vago
Lote na Avenida Moab Caldas, no bairro Santa Tereza
- Área do terreno: 8.305 metros quadrados
- Situação: densamente ocupado
Lote na Avenida Moab Caldas, no bairro Santa Tereza
- Área do terreno: 12.416 metros quadrados
- Situação: densamente ocupado
Lote no bairro Camaquã
- Área do terreno: 8.904 metros quadrados
- Situação: ocupado pela Vila Maria. Documento do INSS registra ser possível área de risco.
Lote no bairro São José/Campo da Tuca
- Área do terreno: 40.120 metros quadrados
- Situação: densamente ocupado
Lote no bairro Camaquã
- Área do terreno: 12.874 metros quadrados
- Situação: área de risco com ocupação
Lote no bairro Camaquã
- Área do terreno: 5.488 metros quadrados
- Situação: área de risco com ocupação. Corre ação de reintegração de posse na Justiça Federal
Gleba no bairro Passo d’Areia
- Área do terreno: 5.134 metros quadrados
- Situação: vago, com classificação de área verde no Plano Diretor de Porto Alegre
Gleba na Vila Safira
- Área do terreno: 15.237 metros quadrados
- Situação: ocupado
Gleba no bairro Camaquã
- Área do terreno: 44.613 metros quadrados
- Situação: ocupado, com classificação de área de risco
Por que o INSS tem imóveis?
A reportagem perguntou ao INSS por que o instituto, cuja função é gerir a Previdência Social, é dono de apartamentos e salas comerciais, entre outros imóveis. Ao que o órgão respondeu:
"O INSS é o sucessor legal de todos os antigos institutos e fundos de pensão que já existiram no país (IAPAS, IAPTEC, IPASE, INPS). Todos os bens que pertenciam a eles passaram a ser propriedade do INSS. As dações em pagamento também contribuíram para a formação desse patrimônio. Como forma de quitar tributos, o devedor entregava o bem como pagamento. Desde 2007, essa atribuição é da Receita Federal, mas os bens adquiridos antes disso ficaram vinculados ao FRGPS. Por isso, a grande quantidade de imóveis não operacionais."