Tempo e o tempo fora do tempo e o desejo de não desejar tão somente ser. E o tempo do gato preenche entre a preguiça ao sol e o espreguiçamento do desperto. Na próxima vida quero vir gato. Eu não sei viver o presente como os gatos vivem. Eles são animais das desimportâncias . Tudo neles é sentido, o sol, a chuva, a manhã, a noite, o dormir, os livros, a companhia, a solidão, a casa vazia, o quarto bagunçado, as roupas para lavar. Eles se permitem viver tudo aos pouquinhos, dando tempo para o tempo que se apresenta, sem estar num antes e muito menos num depois. Em contraste, estamos nós e como fazemos coisas sem sentido, sem sentir.
Pagamos contas, dirigimos, conversamos e quiça, até fazemos amor sem sentir, pois que sentir, dói. Amar dói, deixar de amar dói, dói pensar, dói viver. Dói também pagar as contas do mesmo modo que dói não ter dinheiro para quitá-las. Dói a morte de um amigo e dói a presença de alguém que não suportamos. Somos pequenos catálogos de dores possíveis. Desde a infância dói, e descobrimos logo cedo que estar sozinho, dói. E depois doerá também, porque descobriremos que de tanto tempo sozinhos já não sabemos mais brincar em grupo. E ainda adiante, na adolescência, tudo doerá o dobro. Dói o corpo que se modifica, dói a existência, dói o fato de nos sentirmos totalmente deslocados das pessoas mais próximas, dói o amor e a falta do amor, dói o tesão, dói o sexo, dói o medo do outro, o medo de si mesmo, dói, tudo dói.
Com o passar do tempo aprendemos que sentir é muito doloroso. Como se a vida nos educasse por uma pedagogia estranha, em que a dor é mais presente que o prazer. Então para sofrer menos paramos de sentir. Por um tempo, talvez por um longo tempo, iremos achar que descobrimos um modo de sofrer menos. Usaremos medicamentos que acalmem nossa dor e superficialmente voltem a colorir nossos dias. Alguns usarão drogas, bebida ou outras formas de aplacar esses vazios que revelam o quanto somos esburacados por dentro. E talvez, num domingo de sol e céu azul descobriremos que ainda doemos e que todas as curvas que demos para fugir de nós mesmos, nos trouxeram de volta. Eis que outra vez estamos aqui. Sim, é doloroso assumir quem se é. É doloroso nos percebermos sem subterfúgios, assim com olheiras, cansaço, medo, vergonha, desejo, deslocado, silencioso, incompleto, imperfeito e inconstante. Buscamos a perfeição e parece que a felicidade depende dela. É preciso coragem para colocar-se em oposição a isso. Aceitar a dor de viver é voltar a viver, por mais paradoxal que isso pareça. Por isso gosto tanto dos gatos, eles vivem a delícia e o inferno de serem quem são, sem julgamentos e sem o peso da importância que damos para a própria história.