
Referência mundial na história do documentário, o cineasta Eduardo Coutinho (1933 - 2014) morreu sem concluir seu 14º longa-metragem. A montadora Jordana Berg e o documentarista e produtor João Moreira Salles, porém, editaram as 32 horas de conversas do autor de Cabra Marcado para Morrer (1984) e Edifício Master (2002) com estudantes do Ensino Médio de escolas públicas do Rio de Janeiro e finalizaram o projeto. O cenário é franciscano: os entrevistados sentam-se em uma cadeira no meio de uma enorme sala vazia, tendo uma porta azul às costas. Filme-testamento de Coutinho, Últimas Conversas (2015), atualmente em cartaz na Capital, expõe as dúvidas e angústias do então octogenário realizador, que confessa sua crise artística em uma entrevista na abertura do longa.
Diretor de documentários como Notícias de uma Guerra Particular (1999) e Santiago (2006), Salles era amigo e colaborador de Coutinho - a parceria rendeu inclusive um par de títulos lançados em 2004, Peões e Entreatos, sobre o passado operário de Lula e o cotidiano do personagem como presidente.
Na entrevista a seguir, o idealizador da revista Piauí comenta os impasses do mestre em seu derradeiro trabalho, ressalta a inquietação criativa permanente de Coutinho e revela como a equipe atendeu ao desejo do veterano criador de fazer um filme só com crianças, acrescentando um curioso bate-papo do diretor com uma menininha no final de Últimas Conversas.
Eduardo Coutinho chegou a conceber uma ideia de montagem do filme?
Coutinho faleceu antes do início da edição. Naquela altura o material já havia sido transcrito para o papel, e ele chegou a fazer anotações na margem dessas transcrições. É o que existia quando Jordana (Berg) e eu começamos a montar o filme.
Qual foi a sua participação no filme?
Fui interlocutor da Jordana, responsável pela montagem do filme. Quando a gente se vê no papel de terminar um filme que foi pensado e filmado por outra pessoa, são várias as dúvidas que surgem. A principal delas é a seguinte: que filme fazer? Aquele que a gente presume que o Coutinho teria feito ou aquele que podemos fazer, desde o nosso ponto de vista, a partir do material filmado por ele? Nenhuma pergunta era mais importante do que essa, e eu e Jordana a respondemos juntos. O resto é secundário: assisti a cada corte, sugeri mudanças, propus o título, essas coisas.
Qual foi o critério de seleção das entrevistas?
Em parte, nos guiamos pelas anotações de Coutinho e também pela reação dele durante as filmagens, que a câmera do Jacques (Cheuiche) foi capaz de capturar - alegria, entusiasmo, por vezes irritação. Isso nos dava uma ideia do que ele gostara ou do que lhe parecera revelador. A tais pistas mais ou menos claras, é preciso acrescentar o muito que Jordana e eu conhecíamos o Coutinho. Sou produtor dele desde 1999; Jordana era a sua montadora desde Santo Forte (1999). Não éramos apenas colaboradores, éramos amigos. Durante mais de 15 anos, trocamos ideias sobre tudo, inclusive cinema. Por conhecermos bem a obra dele, sabíamos quem estava em diálogo com quem, qual personagem trazia à tona algum novo aspecto das preocupações que sempre orientaram o cinema dele - as relações familiares, a vida sem fé, os modos de enfrentar a morte, a ficção que se imiscui aos fatos. É isso que escolhemos.
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A entrevista com Coutinho no começo do filme já era prevista desde sempre?
Não. Coutinho tinha dúvidas em relação ao projeto. Levou essa angústia para a filmagem. No quarto dia, a crise se tornou aguda. Foi quando a equipe sugeriu que ele se sentasse na cadeira destinada aos personagens e falasse do impasse. Não estava planejado, e é improvável que a cena fosse incluída no filme que ele teria feito, não por qualquer constrangimento em se mostrar assim tão frágil, mas por achar que quem deve falar são os personagens, não ele - ou, ao menos, não ele de modo tão direto.
Últimas Conversas apresenta-se como um impasse que se afigura quase como uma impossibilidade - uma recorrência na carreira de Coutinho. Esse tipo de dificuldade não funcionava para ele como uma espécie de estímulo desafiador, ainda que inconscientemente?
Nem todas as crises são iguais. Havia, sim, crises, digamos assim, retóricas, nas quais, de maneira bastante consciente, Coutinho cortejava o fracasso para melhor exorcizá-lo. "Esse avião vai cair", ele dizia sempre antes de embarcar, acreditando um pouco na profecia, mas acreditando também que, dada a sua natureza de gauche na vida, qualquer vaticínio saído de sua boca estava fadado a não se cumprir. Em alguns filmes, ele se valia dessa apólice de seguro mágica. Não foi o caso aqui. A angústia era real. Dizia respeito não só ao tema que considerava difícil - o cinema dele dependia essencialmente da memória, que recupera e inventa, e agora ele se dispunha a conversar com jovens com pouco passado e muito futuro -, mas também à saúde e à vida em geral. Ele estava se aproximando da morte e queria razões para seguir adiante. O cinema sempre encantara o mundo para ele, agora parecia não mais. Ele temia a desconexão com a vida.
Você não acha que as reservas que Coutinho expressa quanto aos depoimentos dos adolescentes, especialmente no final do filme - com comentários como "Ah, que tristeza da adolescência. Devia ter filmado com criança" -, possam ser interpretadas como uma desqualificação dos entrevistados?
A gente aprende com Coutinho que as categorias gerais importam muito pouco. O que conta é a singularidade - no caso, aqui, não o adolescente, mas este adolescente. Se, sob certos aspectos, a adolescência é de fato difícil, e até mesmo triste, no filme ele não teve de se haver com a adolescência, mas com jovens de carne e osso, gente com afetos, alegrias e dores. Com cada um deles pôde falar de coisas únicas e intransferíveis. O fato de esses encontros terem produzido alguns dos pontos mais luminosos da obra dele deixa claro que Coutinho foi capaz de distinguir o geral do particular.
Como surgiu a ideia de entrevistar a pequena Luiza? Quem é ela?
Foi um presente da equipe. No último dia de filmagem, decidiram chamar duas crianças para conversar com ele. Fazer um filme com crianças era um velho sonho de Coutinho. Luiza é sobrinha da produtora do filme, Carol Benevides.
Como você situa Últimas Conversas na filmografia de Coutinho?
Como mais uma etapa do percurso dele em direção às fronteiras mais distantes do cinema não ficcional. À moda de um faquir testando os limites do corpo, Coutinho parece querer saber do quão pouco o cinema precisa para continuar a ser cinema. É um exercício progressivo de inanição, no qual ele retira os nutrientes que sempre alimentaram a arte: narração, roteiro, movimento de câmera, tema, até mesmo direção - como em Moscou (2009). O que ainda sobrava? No caso dele, pessoas e as suas memórias. Aqui, ele suprime boa parte da força da memória, elemento central do cinema dele - memória entendida como experiência vivida sobre a qual se sobrepõe uma camada de invenção. O cinema dele dependia demais dessa invenção. Por estar falando com jovens, a experiência e a memória da experiência estão muito próximas, de modo que os sedimentos de ficção ainda não tiveram tempo de se acumular. O que se investiga aqui é se o cinema dele é capaz de sobreviver a mais essa supressão.
Coutinho chegou a esboçar algum projeto que pretendia realizar depois de Últimas Conversas?
Fazer um filme sobre absolutamente nada.
Qual é o legado que Coutinho e sua obra deixam para o cinema?
É grande demais para que eu consiga resumir em poucas linhas. E, mesmo que conseguisse, seria pobre, pois ainda estou longe de entender a verdadeira dimensão do que ele fez.
Últimas Conversas
De Eduardo Coutinho
Documentário, Brasil, 2015, 85 minutos.
Classificação: livre.
Estreia nesta quinta-feira em Porto Alegre.
Cotação: ótimo.