
Por Everton Cardoso*
Neste fim de semana, Porto Alegre viveu mais um momento a ser lembrado na história da cena artística da cidade: a inauguração do Teatro João Simões Lopes Neto, no complexo Multipalco Eva Sopher, situado ao lado do histórico Theatro São Pedro, em Porto Alegre, e com capacidade para 576 pessoas.
A ocasião foi marcada pela estreia de uma posta em cena da ópera Turandot, de Giacomo Puccini, numa parceria entre a Companhia de Ópera do Rio Grande do Sul (Cors) e a Orquestra Sinfônica de Porto Alegre (Ospa). Foram quatro récitas; tive a oportunidade de acompanhar a de quinta, dia 27. (A gravação do espetáculo na íntegra está disponível no canal da Cors no YouTube.)
Há aproximadamente nove anos, quando a Ospa retomou suas montagens cênicas de ópera, ainda parecia improvável pensar que chegaríamos ao ponto de ter dois palcos com capacidade de receber espetáculos do gênero na capital.
Um novo momento
Lá em 2016, em meus comentários para o programa Nota Musical, na Rádio da Universidade, da UFRGS, um dos temas do momento era uma parede que impediu por mais de três décadas o uso do fosso de orquestra em nosso tradicional teatro do século 19 — tanto é que, em Don Pasquale, a orquestra dividiu o palco com o elenco de canto e atuação. Sim, era apenas uma parede não estrutural que logo foi retirada.
Agora, nos vemos diante deste novo momento e há muito que celebrar. Ainda mais porque a maioria das montagens de óperas vem instaurando uma lógica de trabalho em cooperação com companhias de dança, artistas da cena de diferentes perfis e diversas propostas de cenografia, figurino e tudo mais. Esta Turandot que assistimos, aliás, é uma produção da Cors com a Ospa e ainda conta com outras parcerias e apoios.

Sistema de produção de óperas
E os motivos para comemorar não param por aí: Porto Alegre vem testemunhando a organização de um sistema de produção de óperas, o que é a garantia de que esse tipo de espetáculos ganha não só fôlego mas também qualidade.
E o melhor é que isso não é algo pontual: há nove anos, a Ospa apresenta pelo menos um título em cada temporada; em 2022, estruturou-se a Companhia de Ópera do RS em formato de cooperativa de cantoras e cantores líricos; no mesmo ano, o Ópera Estúdio, projeto da Secretaria de Estado da Cultura (Sedac-RS), começou um programa de formação de artistas para esse gênero de espetáculo; e neste ano a Cors passou a contar com um coro de 40 vozes especializado em composições do repertório lírico — e que vimos fazer boa apresentação em Turandot.
Pessoalmente, me sinto realizado por participar desse movimento, escrevendo e registrando minhas impressões num espaço relevante como GZH, que tem também dado muita visibilidade ao que acontece no campo por meio de reportagens e colunas.
Os três enigmas de Turandot

A ópera recentemente apresentada conta a história da princesa chinesa Turandot, uma mulher fria e impiedosa que impõe uma condição para quem desejar se casar com ela: o pretendente deve responder corretamente a três enigmas; se errar, é executado.
A soprano Eiko Senda deu vida à personagem-título com seu canto potente e preciso; na interpretação, alternou entre uma postura mais distante e arrogante e outra mais amedrontada e vulnerável, explorando uma personagem que oscila entre restringir-se e permitir-se sentir e levar pelos desejos.
O tenor Enrique Bravo interpretou Calaf, um jovem príncipe que chega à cidade, se apaixona pela princesa e decide tentar a sorte, mesmo sabendo dos perigos. Para tentar impedir que mais homens morram, Liù, escrava leal a Calaf brilhantemente interpretada pela soprano Gabriella Pace, tenta dissuadi-lo, afinal ela também tem sentimentos por ele, mas ele não percebe.
Depois que ele decifra os três enigmas, diz que não pretende se casar sem que a princesa assim o deseje e a desafia a descobrir seu nome até o amanhecer. Ela, então, não deixa que ninguém na cidade durma — momento em que o protagonista canta a conhecida ária Nessun Dorma — e manda torturar Liù. O príncipe, então, revela seu nome, mas Turandot, ao anunciar o que descobrira, se vê apaixonada por ele.
Abordagem exotizante
Ambientado em Pequim, na China Imperial, o libreto, de autoria de Giuseppe Adami e Renato Simoni, seguia uma tendência das primeiras décadas do século 20, lançando um olhar sobre culturas não europeias e se apropriando de elementos delas.
Neste caso, é sobre uma cultura "oriental" — aqui um termo generalizante propositalmente escolhido por mim para enfatizar o quanto se costumava colocar sob uma única definição tudo que viesse de um conjunto de culturas asiáticas.
Puccini, aliás, já havia transitado por esse universo ao compor Madama Butterfly, situada no Japão e tratando justamente da relação entre Oriente e Ocidente.
Essa abordagem exotizante tem uma série de implicações importantes de se marcar. Se, por um lado, sempre trouxe para perto do universo europeu alguma diversidade, o fez de modo que pode levantar questionamentos — um pouco na linha do que vimos acontecer recentemente com o filme Emilia Pérez.
Afinal, a inspiração para a ópera não promoveu nenhuma real ruptura com a lógica então instaurada e que em boa medida perdura até hoje, que vê a produção cultural europeia como a central, a referência para todo o resto, a que lança o seu modo de ver sobre o que está fora dela.
Isso está presente na escolha do tema e na proposta de enredo para a obra, mas também está na composição, já que Puccini incluiu elementos musicais que remetem a uma atmosfera "oriental". A montagem concebida e dirigida por Flávio Leite, aliás, trabalha essa questão de modo interessante.
Elementos visuais orientais

Os cenários de Yara Balboni, os figurinos de Daniel Lion e a iluminação e videografia de Ricardo Vivian combinam uma série de elementos que criam uma ambiência que, por um lado, traz elementos visuais orientais que dão concretude e localizam a narrativa, mas que por outro contêm uma contemporaneidade e uma abstração que também tornam a montagem mais universal.
O cenário é bastante sintético, mas cumpre muito bem seu papel. Nos três atos, escadarias brancas vão sendo deslocadas de modo a criar diferentes níveis e a permitir diferentes movimentações na cena, enfatizando sobretudo as hierarquias das personagens — Turandot e o Imperador (Adolfo Amaral), por exemplo, passam boa parte do tempo na parte superior.
Além delas, uma belíssima lua feita de leques de papel de diferentes tamanhos distribuídos em forma circular, um conjunto de tecidos brancos e um grupo de lanternas esféricas de papel branco e de diferentes dimensões vão se alternando para complementar.
Projeções também compõem algumas cenas, enfatizando emoções de personagens ou elementos da narrativa. Quando Calaf decifra os enigmas, por exemplo, letras surgem embaralhadas e aos poucos formam as respostas: esperança, sangue e Turandot. Esse ponto da história, inclusive, depois será enfatizado quando a personagem principal começa a deixar-se envolver pelo príncipe: sobre o figurino branco e prateado dela são projetadas chamas — uma clara referência ao terceiro enigma, "Qual é o gelo que te faz pegar fogo?".
Figurinos com cores mais neutras

Na composição dos figurinos há quimonos, batas e saias rodadas de cintura alta que, remetem sutilmente à estética chinesa, mas sem chegar a uma literalidade ou a uma tentativa de imitação.
Aliás, há uma presença recorrente de elementos com dobras paralelas — pregueados e plissados — que é interessante: estava nas saias brancas de integrantes do coro, ali representando o povo de Pequim, estava nas saias pretas do corpo de dança que fazia intervenções durante as cenas e estava na lua. Visualmente, há algo de estável nessas linhas que se repetem, mas também há algo de bastante intrigante na tridimensionalidade gerada por essas composições.
Também a escolha das cores diverge bastante do que nosso imaginário prevê quando imaginamos o "Oriente": em vez de cores vivas, predomínio de cores mais neutras. O destaque, sem dúvida, é o figurino do Imperador: surge, no topo de uma das escadarias, com um vestido branco; quando abre os braços, há mangas que chegam ao chão e, em cada uma, um círculo vazado, criando uma impressão de majestade bastante impactante.
Por uma lógica de repertório

Referencial do êxito da proposta cênica é a cena final: o Imperador está no topo das escadas e, atrás dele, vê-se a lua feita de leques brancos; Turandot e Calaf sobem de mãos dadas usando capas prateadas que se esparramam pelos degraus; e o coro, disposto nas laterais, acena fitas brancas — semelhantes às utilizadas em ginástica rítmica.
Triunfante, encerra uma apresentação que contou com ótima apresentação da orquestra, sob regência de Carlos Vieu, e do coro, este regido por Sérgio Sisto. O coro lírico da Cors, é importante ressaltar, é sem dúvida das coisas mais marcantes deste momento em Porto Alegre, e não só por sua apresentação, mas pelo fato de esta ter sido a estreia do que agora se torna um corpo estável dedicado a montagens operísticas.
Enfim, mais uma vez está diante de nós uma evidência de que algo muito relevante se desenrola em nossa cidade e em nosso Estado no que se refere à ópera. Esta montagem, inclusive, já apresentou um ganho: foram quatro récitas — sendo uma para convidados e três abertas ao público — em vez das costumeiras duas.
Torço, como venho pontuando recorrentemente, para que comecemos a ver uma lógica de repertório de montagens, com reapresentações daquelas exitosas para que possamos ver e rever. Esta Turandot, claro, estaria entre essas.
* Jornalista e crítico