
Desde que estreou no catálogo da Netflix, na primeira quinzena de março, a minissérie Adolescência tem jogado luz sobre questões sociais diversas. A produção narra a história ficcional de Jamie Miller (Owen Cooper), um menino de 13 anos que mata sua colega de turma, Katie (Emilia Holliday), com golpes de faca.
Entre as reflexões que emergem do enredo, marcado por tópicos como o bullying, o potencial nocivo das redes sociais e a ascensão cultura incel, também chama atenção a culpa nutrida pela família dele.
O sentimento é escancarado através do arco de Eddie, o pai de Jamie, que é interpretado por Stephen Graham, também autor da minissérie (atenção: spoiler no trecho a seguir). No episódio final, ambientado 13 meses após a prisão do garoto, ele e a esposa, Manda (Christine Tremarco), conversam sobre a parcela de responsabilidade que acreditam ter sobre o crime.
Eles buscam identificar possíveis falhas na criação dada a Jamie, reconhecem que passavam pouco tempo com ele e questionam se poderiam ter agido para evitar a tragédia. Ao fim do diálogo, Eddie adentra no quarto do filho e sucumbe à culpa. Chorando sobre o travesseiro do menino, diz: "Sinto muito, filho. Eu deveria ter feito melhor".
De quem é a culpa?
A sequência atinge os espectadores como um soco, sobretudo aqueles que também são pais, levantando a reflexão: de quem é a culpa quando um jovem comete um ato violento?
Para o procurador Fábio Costa Pereira, coordenador do Núcleo de Prevenção à Violência Extrema (Nupve) do Ministério Público do RS, toda a sociedade é responsável pela formação dos jovens. Assim, quando um episódio como o retratado pela série acontece, a falha não é somente dos pais ou da escola, mas de todos.
— Um problema dessa dimensão não é um problema de causa única. Mais importante do que procurarmos culpados é procurarmos respostas, entendermos porque nós, enquanto sociedade, não fomos capazes de evita-lo — afirma o procurador.
É tentador colocar a culpa nos familiares, mas a responsabilidade é compartilhada.
KARINE POSSEBON
Psicóloga
A visão é compartilhada pela psicóloga Karine Possebon. Ao analisar o episódio narrado na série, ela destaca que múltiplas instâncias poderiam ter intervindo, de modo que a culpa não pode ser atribuída somente aos pais.
— Quando eventos trágicos, como os retratados na série, ocorrem, buscamos explicações e frequentemente culpamos os pais — constata a psicóloga. — É tentador colocar a culpa nos familiares, mas a responsabilidade é compartilhada. A falha pode estar na falta de comunicação, na ausência de suporte emocional, ou mesmo na desconexão entre a família e a escola. É uma questão complexa que vai além de um único fator — complementa.
Pereira observa que a radicalização juvenil — quando um jovem passa a seguir ideologias extremistas e se torna potencialmente violento — não é um fenômeno inventado pela série. Trata-se de um problema da vida real, que deve ser olhado com atenção por pais, educadores e governos.
À frente do Nupve, o procurador ajudou a neutralizar 37 ameaças de ataques violentos no Rio Grande do Sul em 2024. Segundo ele, é possível perceber algumas semelhanças entre os adolescentes envolvidos nos casos, às quais todos podem estar atentos.
Como característica comum, a maioria tem a ausência de motivação para viver. São jovens que não se sentem identificados com nada, não conseguem perceber sentido nas próprias vidas e têm dificuldade de se integrar socialmente. Por isso, acabam por se tornar indivíduos isolados e deprimidos — presas fáceis para grupos que incentivam a violência extrema, conforme o procurador.
— Esses jovens têm grande tendência a se deixar levar por ideologias radicais que afloram, sobretudo, no meio virtual. É aí que eles vão encontrar indivíduos que passaram pelo processo de radicalização e oferecem isso como uma solução para os problemas deles. Esse é o atrativo do universo radical: ele dá soluções fáceis para problemas difíceis. Os jovens que caem nessa armadilha acham que finalmente encontraram o propósito que tanto buscavam, que passa a ser vingar os supostos responsáveis pelas frustrações deles — explica Fábio.

Internet é a vilã?
A sistemática citada pelo procurador é a mesma retratada pela série. Na trama, Jamie é um jovem que enfrenta problemas de autoestima, tem pouca habilidade social e passa a maior parte do tempo em frente ao computador. No ambiente virtual, ele tem contato com comunidades de caráter misógino, que culpam as mulheres pelas dores que afligem seus integrantes — no geral, ligadas a insucessos afetivos.
Os pais do Jamie achavam que o filho estava seguro dentro do quarto, quando, na verdade, ele estava mergulhado em um ambiente inóspito.
FÁBIO COSTA PEREIRA
Procurador e coordenador do Nupve do MPRS
Para Pereira, a série ajuda a chamar atenção para a necessidade de pais e responsáveis estarem atentos à vida virtual das crianças e adolescentes. Isso porque, em tempos de internet, estar em casa não é sinônimo de estar em segurança.
— Os pais do Jamie achavam que o filho estava seguro dentro do quarto, quando, na verdade, ele estava mergulhado em um ambiente inóspito. Ou seja, com a internet, a casa pode não ser o lugar onde o adolescente realmente está. E os pais precisam saber onde os seus filhos estão — diz.
O procurador entende que as redes sociais e demais ferramentas da internet podem e devem fazer parte da vida dos jovens, mas não de forma desregulada. Pereira defende que os pais imponham limites ao tempo que os filhos utilizam a internet e tenham um controle rígido sobre o uso que eles fazem das plataformas digitais:
— A melhor dica que posso dar para os pais é que procurem saber o que os seus filhos fazem, o que os seus filhos consomem e com quem e como os seus filhos se comunicam online.
Além disso, é preciso compreender os significados dos códigos utilizados pelos jovens no ambiente virtual. Segundo Juliana Vargas, professora do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e especialista em Tecnologias Digitais Aplicadas à Educação, os entendimentos acerca da linguagem mudam conforme a geração.
Ela cita o exemplo retratado pela série, que evidencia os significados distintos que os emojis têm para os mais velhos e os mais jovens. Enquanto os personagens adultos acreditam que os símbolos comentados por Katie nas redes sociais de Jamie representam uma manifestação de carinho, na linguagem dos adolescentes, eles constituem uma forma de bullying.
— A série mostra o quanto os adultos, por mais que estejam inseridos no mundo virtual, não o entendem da mesma forma que os jovens. Por isso, é importante também estar atento a esses códigos. Mas como fazer isso? Um caminho possível é através do diálogo, perguntando aos filhos e buscando entender esses significados — afirma Juliana.
Qual a responsabilidade dos pais?
A falta de tempo é um desafio para o estabelecimento do diálogo e a qualificação da relação entre pais e filhos. O tópico é abordado pela trama de Adolescência, que mostra os pais de Jamie como adultos ocupados, que apesar de amarem e se importarem com os filhos, dispõem de poucas horas para o convívio familiar.
Juliana observa que a problemática é comum a grande parte das famílias, independentemente da classe social.
— As classes menos favorecidas precisam batalhar pela subsistência. Então, os pais trabalham muito, por vezes usam as horas de folga para fazer bicos, e acabam tendo pouco tempo com os filhos. Nas classes mais favorecidas, a gente vê pais que também trabalham muito e que buscam oferecer um repertório de experiências e formações diversas aos filhos. Esses pais, então, matriculam os filhos no inglês, no judô, na natação, na música e em uma série de outras atividades, de modo que não sobra tempo para a convivência. Todos esses cenários são compreensíveis, mas ainda assim, os pais precisam priorizar ter tempo de qualidade com os seus filhos — diz Juliana.

A questão, contudo, deve ser tratada com parcimônia. Ainda que a falta de tempo não justifique o distanciamento entre pais e filhos, é preciso entender que nem todo adolescente cujos pais possuem uma rotina atarefada acabará por se tornar um jovem violento.
Para a psicóloga Karine Possebon, a série aborda um cenário extremo, que não deve ser encarado como regra, mas serve como alerta.
— Vivemos uma era em que muitos pais estão sobrecarregados com suas responsabilidades diárias e, consequentemente, não conseguem monitorar adequadamente o que seus filhos consomem online. No entanto, isso não significa que seus filhos se tornarão violentos. A série nos provoca a refletir sobre o ambiente emocional que estamos oferecendo aos nossos filhos. Ela nos pergunta se estamos realmente presentes — reflete.
A série nos provoca a refletir sobre o ambiente emocional que estamos oferecendo aos nossos filhos. Ela nos pergunta se estamos realmente presentes.
KARINE POSSEBON
Psicóloga
A urgência, para as especialistas, está no estreitamento do vínculo parental. É diligente que os pais consigam romper as barreiras que os separam de seus filhos (muitas vezes, simbolizada pela porta do quarto) e estabeleçam um diálogo aberto e profundo com eles.
Algo que, conforme Juliana, ganha mais importância ao se tratar de meninos — a exemplo do protagonista de Adolescência. A professora da UFRGS afirma que, entre os garotos, a importância dos momentos de conversa costuma ser negligenciada.
Enquanto as adolescentes apresentam uma maior flexão para o diálogo, os adolescentes esbarram nos estereótipos de masculinidade e demonstram resistência a se abrirem e se mostrarem vulneráveis.
— Na série, agente vê isso através do Jamie, que não têm um diálogo estabelecido com os pais, mas também pelo arco do policial que investiga o crime. Quando ele vai à escola do Jamie e conversa com o próprio filho, comenta que aquele diálogo de não mais que cinco minutos foi o maior que os dois tiveram em anos. Isso evidencia como o distanciamento que há entre pais e filhos pode ser ainda maior quando falamos de meninos — comenta Juliana.
Qual o papel da escola?
O procurador Fábio Costa Pereira orienta que os adultos estejam atentos a mudanças no comportamento dos adolescentes. Por exemplo, quando um jovem que costumava ser carinhoso e comunicativo com a família, passa a responder de forma ríspida, fica distante e rejeita o convívio, preferindo se trancar no quarto.
Conforme Pereira, a escola também tem papel importante na leitura dessas mudanças. Os educadores dividem a responsabilidade pela formação dos jovens, por isso, devem observar os sinais dados. Ao perceber que algo não está bem, a escola deve comunicar os responsáveis e os órgãos competentes.
Juliana destaca a importância de o ambiente escolar ser também um ambiente de abertura ao diálogo. A escola é o maior grupo social em que os jovens estão inseridos, além de ser o local onde passam boa parte do dia.
Por isso, não é raro que os alunos se sintam mais à vontade para conversar determinados assuntos com os professores que precisam estar preparados para administrar essa troca.
— Eu não quero dizer que os professores devem parar de dar aula, preparar um chimarrão e fazer rodas de conversa com os alunos a todo tempo. Porém, dentro das práticas pedagógicas, precisamos encontrar formas de estabelecer momentos de escuta. O momento em que se pergunta ao aluno como ele se sente e o que ele pensa sobre determinadas questões é um momento extremamente rico, que pode ajudar a evitar situações como a retratada pela série — diz Juliana.