Abraham transformou-se em uma estátua mais relax. Depois de anos, aprendeu que ficar imóvel não é tão fundamental assim. Ontem, no Brique da Redenção, avistei-o de longe, sobre um pedestal. Olhava o mar de gente, movia-se de vez em quando.
"Estátua aperta a mão?", perguntei. "Mas é claro que sí", respondeu em portunhol, enquanto retribuía o sorriso. Abraham é um cara calmo e suave. Condição básica para ser estátua, me ensinou tempos atrás. Já o entrevistei algumas vezes.
Ele é argentino, mora há quase 20 anos no Brasil. Ganha a vida desse jeito, vestido meio de anjo, meio de santo, sempre na rua. Por isso, quando posso, gosto de ouvi-lo.
Ver Porto Alegre do ponto de vista de uma estátua é algo comum. Seja sobre um cavalo ou com uma boleadeira na mão. Difícil mesmo é achar uma que relate suas impressões. "E aí, Abraham? Como estão as coisas?".
Não pense que o tom foi de reclamação ou de tristeza. Do alto da sua sabedoria, Abraham esculpiu a resposta. "As pessoas estão com medo. Com medo de abrir as carteiras na rua, com medo de mostrar os celulares e serem roubadas. Então piorou", concluiu. E eu quase com torcicolo de olhar tão pra cima.
O Abraham vive das contribuições espontâneas das pessoas que passam e batem selfies. Apesar da queda no movimento, não desiste do sorriso.Deu um colar de plástico para a minha filha, recusou qualquer pagamento e emendou: "Estou aqui há anos e nunca tinha visto um assalto. Faz meia hora, aconteceu um bem ali". Apontou o dedo branco para um pouco mais à frente, no meio do redemoinho de gente.
Me despedi. Continuei o passeio com a minha filha até a outra ponta, a dos antiquários.
Na volta, alcancei a ela uma cédula de dinheiro para que depositasse na caixinha do Abraham. Ele disse "mas eu não queria". Tirei da cartola um argumento: "Eu sei, Abraham, mas acho importante ensinar minha filha a respeitar e valorizar a arte". O Abraham entendeu. E aceitou. E sorriu.
Fui embora pensando: chegamos ao ponto em que até as estátuas sofrem com a inércia de quem já deveria ter se mexido há muito tempo.
Cúria
A arquidiocese de Porto Alegre tem um novo vigário-geral, uma espécie de vice-arcebispo.O padre Cirineu Furlaneto, natural de Roca Sales, assumiu a função.Seu antecessor, Carlos Haas, pediu para se dedicar mais aos estudos. Está fazendo doutorado.
Opinião
Domingo no parque
Confira a coluna do Informe Especial desta segunda-feira
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