
O jornalista Vitor Netto colabora com o colunista Rodrigo Lopes, titular deste espaço.
Há poucas semanas, Ainda Estou Aqui, vencedor do Oscar de Melhor Filme Internacional, tornou-se a terceira maior bilheteria global de uma obra brasileira na história.
Neto de Rubens e Eunice Paiva, Chico Paiva esteve em Porto Alegre na semana passada para receber a Comenda Porto do Sol, entregue pela Câmara de Vereadores da Capital, sob proposição do vereador Roberto Robaina (PSOL). Chico conversou com a coluna com exclusividade.
Qual foi o seu sentimento ao assistir ao filme?
Para nós, é um sentimento de orgulho, de muita honra ao ter a história da nossa família contada por pessoas tão talentosas quanto Walter Salles, Fernanda Torres, Selton Mello e toda a equipe. Minha avó e minha mãe sempre me ensinaram que não deveríamos, nunca, pessoalizar a dor da nossa família como uma coisa nossa, uma busca por vingança, uma reparação nossa, mas, sim, uma luta coletiva pelo país. Minha avó dizia que o grande crime foi praticado contra o país, e não só contra a nossa família. Então, que a nossa história, de nossa família, possa servir de exemplo para contar outras, que o filme possa servir de inspiração para que outras histórias sejam contadas, para que pessoas que estão, hoje, em lutas importantes também se sintam inspiradas. É muito mais um sentimento de poder usar a história da nossa família para contribuir com essas lutas do que jogar holofote em cima de nós mesmos. Fico até pensando que o meu avô e minha avó deveriam estar contentes, porque o filme serviu ao propósito ao qual eles dedicaram a vida inteira: uma luta pela democracia, pelos direitos humanos, pelos direitos sociais. Não é à toa que meu avô foi caçado e perseguido, porque lutava por coisas que divergiam daquele regime, (como) as reformas de base, a reforma agrária.
E em relação à vitória no Oscar?
Eu estava lá, fui a convite da produção do filme, e foi uma sensação de final de Copa do Mundo. Todo mundo nervoso, ansioso. Nós nos juntamos, antes de a cerimônia começar. Todo mundo se abraçando, parecia aquela cena que vemos na Copa, dos jogadores no túnel, subindo para o gramado, todo mundo se incentivando. E então aquela tensão. Na hora do anúncio, foi uma explosão, um grito, nós nos abraçando, chorando, caindo uns por cima dos outros, e os gringos não tão entendendo nada: "Quem são esses malucos aqui gritando?". Era uma sensação de alívio, porque, claro, o grande mérito do filme foi trazer essa discussão à tona, mas naquele dia, se não tivesse ganho o Oscar, ia ser um sentimento de velório. Você vê que as pessoas que estão em contato com o filme, como o Walter e a Fernanda, se mobilizam e se motivam por coisas que vão além do seu próprio sucesso, estão fazendo parte de uma coisa que está ganhando uma dimensão maior do que a própria carreira e vai ter impacto em discussões que estão sendo travadas no Supremo, no Congresso. Acho que esse é o sentimento com o qual saímos de lá.
Você participou da produção do filme?
Não. O Walter era já amigo da (família). Ele estudou com a minha tia Analu, já conhece meu tio (Marcelo Rubens Paiva) há muito tempo. Pelo meu tio ter sido o autor do livro que deu origem (ao filme), participou ativamente da construção de tudo, do roteiro e dos personagens. Eles conversaram bastante com a minha mãe, com meu tio e tias, porque são as pessoas que viveram aquela época. Nasci quase 20 anos depois do assassinato do meu avô. Eles tiveram, durante todo o processo do filme, muito cuidado, e foram sensíveis sobre como contar a história da família. Eles queriam ter a segurança de que a família se sentiria representada, se sentiria orgulhosa do que estava sendo trabalhado, fizeram muita deferência. Isso emanava principalmente do Walter. Ele frequentou a casa dos meus avós, captou a memória daquela casa com amigos, com danças, pessoas carinhosas uma com as outras, celebrando. Fui ao set algumas vezes. Cada vez que eu ia, era bem recebido. As pessoas ficavam emocionadas por estarmos lá, queriam saber o que estávamos achando e ficavam muito contentes em saber que a família estava feliz com o processo. Chegaram a conversar comigo muito para entender como era a relação com a minha avó, como eu achava que minha mãe viu aquilo, mas quem participou mesmo, ativamente, dentro da coisa foi meu tio.
O filme abre precedente para outras reparações históricas de torturados na ditadura?
Com certeza. Vemos que o Supremo já teve esse entendimento de mudar a certidão de óbito, que antes constava apenas o óbito e agora consta que foi por meio de assassinato pela violência de Estado. Agora, estão discutindo a revisão da lei da anistia, principalmente com base no fato de o corpo de meu avô nunca ter sido devolvido à família. Ocultação de cadáver é um crime que ainda está em andamento, então você não se pode anistiar. O filme dá esse gás para essa discussão voltar à tona e joga luz sobre outras coisas. Tivemos um presidente que, há dois anos, não reconheceu o resultado das eleições e que se articulou para tentar se manter no poder, fatos que culminaram naqueles atos de 8 de Janeiro. Trazer a memória dessa luta e a importância disso mostra para as pessoas o que foi a ditadura. Vimos que os próprios atos de Bolsonaro pela anistia (de quem participou dos ataques antidemocráticos) foram esvaziados. Acho que muito em função de que não é uma luta dos brasileiros. Os brasileiros querem viver em uma democracia. O grande mérito do Walter em contar a história do filme da forma como o fez foi ter tirado todo esse ruído. Ele enxugou esse ruído político eleitoral que se construiu em torno da discussão sobre ditadura e democracia e mostrou a história de uma família, que poderia ser qualquer família brasileira. Com aquelas cenas que estão lá, de almoços de família, reunindo os amigos, se divertindo, um cuidando do outro, qualquer um se identifica. E ver aquela família sendo destroçada pelo autoritarismo simplesmente porque tinha um pai que discordava do regime mostra que não é uma questão de esquerda ou direita. Você pode ser de direita ou de esquerda, mas é necessário defender a democracia acima de tudo. Acho que a mensagem que o filme passa é essa, de que aquele período é uma coisa que destruiu a sociedade brasileira e não só atingiu um ou outro grupo, até porque meu avô nunca foi da luta armada, sequer era comunista. Não que seja errado você ser ou não, mas não era parte da oposição mais radical à ditadura e, mesmo assim, foi preso, torturado, assassinado e, depois, desaparecido. Esse é o grande mérito do filme. Certamente, incendiou outras discussões em outros lugares.
O fantasma da ditadura ainda assombra a democracia do país?
Com certeza. Tivemos um presidente recém-eleito que dizia que Brilhante Ustra (coronel Carlos Alberto Brilhante), que comandava os aparelhos de tortura na ditadura, era herói nacional, que era o herói dele. Um homem que é conhecido por ter torturado, colocado ratos vivos dentro de vaginas de mulheres, estuprado mães na frente dos filhos, cometido os maiores horrores que temos notícia durante a ditadura, é o ídolo do ex-presidente Bolsonaro. Então, (o autoritarismo) está mais vivo do que nunca. Em seu governo, de Bolsonaro aparelhou os cargos de liderança de Estado com um monte de gente que também, como ele, é saudoso desse período. Eles falam abertamente sobre isso. Não é uma coisa camuflada. "Na ditadura que era bom", ou "O problema da ditadura foi ter matado pouco", ou "Tinha de ter fuzilado o Fernando Henrique". Vendo o que aconteceu depois das eleições de 2022 e como até hoje atacam o resultado das urnas, tenho certeza de que a nossa democracia precisa ser defendida. A minha avó sempre dizia: "A luta pela democracia é uma luta constante". Não é uma coisa do tipo conquistou a democracia, agora pode relaxar. Não. Precisamos sempre manter o pé na luta, porque do lado de lá vai haver pessoas que têm seus grupos de interesse e que gostariam de voltar àqueles tempos. É fundamental mantermos essa luta viva. Volto a dizer: não é uma questão de ser de direita, de esquerda, de centro. Você pode acreditar no que quiser, dentro da luta democrática. Estabelecer o limite da democracia e dentro dele cada um defender o que achar necessário.
Como era a Eunice, sua avó?
O filme retrata muito bem ela. Não era aquela avó que mimava os netos, que dava presentes e cozinhava. Era aquela pessoa do tipo que, quando você precisava, ela estaria lá para resolver o problema, mas não tinha essa caricatura da avó que temos hoje. Lembro que eu ia muito para casa dela quando eu precisava estudar para provas importantes, e ela sentava comigo, me ajudava. Espalhávamos os textos na mesa, ela me fazia testes, líamos junto. Era esse tipo de vó. Ela sempre estaria do seu lado. Tem uma cena muito emblemática no filme em que ela anuncia: "Nós vamos nos mudar pra São Paulo". Ela não fala de um jeito bonitinho, fofinho para as crianças. Ela falava: "Arruma as coisas, nós vamos nos mudar". É isso, ela estava carregando a família nas costas, os cinco filhos para criar, com o marido desaparecido. Não conseguia nem ter acesso às contas bancárias dele, então ela resolveu o problema, mas não ia ser cheio de firulas e carinhos. Era uma vó determinada.
Um dos principais ensinamentos que ela nos deu é que não podemos deixar que essas coisas nos definam.
Era uma característica dela ou foi algo que floresceu a partir da luta?
Eu já a conheci desse jeito. Ela sempre foi essa figura muito elegante, contida, mas certamente as coisas que ela passou, e depois ainda teve o acidente com meu tio (Marcelo Rubens Paiva), que ficou meses no hospital, não sabia se ia sobreviver ou não, qual tipo de sequela teria. Foi outro momento em que a minha avó segurou a barra da família. Um dos principais ensinamentos que ela nos deu é que não podemos deixar que essas coisas nos definam. Você vê que no filme tem essa cena também muito icônica de "Nós vamos sorrir". Não vamos deixar que essas coisas ruins da vida definam quem somos. Meu tio foi recentemente no Roda Viva e o entrevistador fez uma pergunta para ele do tipo: "Qual foi o grande momento que definiu a sua vida? A morte do seu pai ou o seu acidente?". E o meu tio falou: "Acho que nenhum nem outro. O grande momento que definiu a minha vida foi no dia que eu estava conversando com o editor da Companhia das Letras e ele falou: "Por que que você não começa a escrever sobre a sua história?" "Naquele momento eu comecei a me descobrir como escritor e aquele foi o grande momento da minha vida". Acho que isso é muito significativo do que a minha vó nos ensinava: o que definiu a vida do meu tio não foram as tragédias que aconteceram com ele, mas quando ele descobriu o chamado dele, o ofício de escritor, que é o que ele carrega até hoje. Minha avó sempre tinha essa coisa de não baixar a cabeça, não deixar que isso definisse a nossa vida. "Vamos seguir a vida de cabeça erguida e vamos reconstruir quantas vezes for necessário".
O que ela acharia do filme?
Acho que ela provavelmente ficaria um pouco constrangida com o nível de holofotes que estariam sobre dela. Com a explosão do filme, é natural, nossa família foi muito procurada para dar entrevistas, para gravar vídeos, então acho que essa parte não era a que ela gostava tanto. Mas ela gostava muito de falar sobre as coisas nas quais acreditava. Acho que ela, claro, teria um orgulho tremendo da história que está sendo contada e usaria a oportunidade para falar das coisas em que acreditava e pelas quais lutou, como ela fez a vida inteira.