É a pergunta mais lida em qualquer rede social: falta o que para um impeachment? Já era uma indagação frequente por causa da crise de Manaus, mas ganhou ainda mais força com a reportagem do site Metrópoles publicada no domingo (24): a administração federal gastou, em 2020, R$ 1,8 bilhão em alimentação – só em pizza e refrigerante, foram 10 vezes mais do que a verba investida no monitoramento de florestas.
Não é o suficiente para a abertura de um processo de impeachment?
Ora, qualquer coisa – de um Fiat Elba a uma pedalada fiscal – pode ser suficiente para um impeachment. Desde que também haja aquilo que, por enquanto, ainda não temos: manifestações de massa. Elias Canetti fala sobre a importância disso na sua obra-prima de 1960, Massa e Poder.
A primeira conclusão de Canetti é: não existe manifestação de massa espontânea. Pode haver um protestinho espontâneo aqui, uma panelinha batendo lá, mas uma manifestação de massa, daquelas gigantescas que ameaçam o status quo e arrepiam a espinha de um presidente, essa aí precisa de organização, planejamento, ordem, coordenação.
E quem é que organiza a massa? Quem é que agrupa esses indivíduos dispersos que querem protestar? Quem assume esse papel, segundo Elias Canetti, é o "cristal de massa" – uma metáfora que ele buscou na química, sua área de estudo na faculdade, para mostrar como as massas se aglutinam.
Talvez o último cristal de massa brasileiro tenha sido o MBL, principal articulador dos protestos contra Dilma Rousseff. Dois anos antes, em junho de 2013, o Movimento Passe Livre fora um cristal de massa. No Fora Collor, foi a UNE. Nas Diretas Já, o PMDB. Contra Getúlio, a UDN. Na Legalidade, Leonel Brizola.
Que cristal de massa existe hoje pedindo a saída de Bolsonaro? PT, CUT, UNE, MST? Com a crise da esquerda, essa turma se inviabilizou como representante de grandes multidões. O próprio MBL e o Vem Pra Rua agora defendem o impeachment de Bolsonaro, mas ainda são capazes de liderar uma convergência de proporções nacionais?
É por isso que Bolsonaro se mantém. Sem um cristal de massa, qualquer estopim para a rebelião popular, qualquer novo fato que confirme a incompetência ou a imoralidade desse governo – seja a compra de leite condensado ou o desprezo pela vida – não serve de gatilho para a revolta de uma massa, ainda que os indivíduos dispersos estejam sedentos por dizer "basta".
Nenhum presidente cai sem o clamor popular. E nenhum clamor se materializa sem um cristal de massa para conduzi-lo. Mas tenho a impressão de que esse cristal vai brilhar daqui a pouco. Talvez sejam mais de um, inclusive, de diferentes matizes ideológicas. Que não demorem muito.