Um dos aspectos mais impressionantes da cerimônia de posse do republicano Donaldo Trump na presidência dos Estados Unidos foi a convivência pacífica e civilizada de lideranças políticas antagônicas e que ainda trazem as cicatrizes da última disputa eleitoral. O democrata Joe Biden e a ex-vice presidente Kamala Harris cumpriram rigorosamente o ritual de passagem. O casal Biden recebeu o casal Trump na Casa Branca para o chá protocolar, o ex-presidente seguiu junto com seu sucessor até o Capitólio para a cerimônia oficial e deixou escrita a tradicional carta de boas-vindas e recomendações para o novo ocupante da cadeira presidencial.
Tem tamanho poder e encanto o regime das liberdades que é capaz de proteger até mesmo quem o ataca
Isso não impediu que Donald Trump criticasse duramente seu antecessor no discurso de posse, na presença do próprio e de todos os demais ex-presidentes norte-americanos vivos, que também participaram presencialmente do evento. Tudo isso às claras, com absoluta transparência, com transmissão ao vivo para o país e para o mundo. Depois, o presidente empossado acompanhou o antecessor até o embarque de despedida. Foi, inquestionavelmente, um espetáculo de civilidade e democracia — regime de governo que se caracteriza exatamente pela convivência entre contrários, entre quem pensa diferente, entre quem defende ideias e ideologias opostas.
Tem tamanho poder e encanto o regime das liberdades que é capaz de proteger até mesmo quem o ataca. Foi o que ocorreu com o próprio Trump, que questionou as regras do jogo eleitoral quando encerrou o primeiro mandato sem a reeleição desejada, com manifestações antidemocráticas que provocaram o ataque de seus correligionários ao prédio do Capitólio, onde ironicamente foi empossado na última segunda-feira.
Com um histórico de bravatas e rompantes autoritários, Trump não tem sido exatamente um fervoroso defensor das instituições. Ao reassumir com maioria no Congresso e diante de uma Suprema Corte dominada pelo conservadorismo, a tendência é de que seu segundo mandato seja um teste ainda mais estressante para a democracia norte-americana.
Já no primeiro dia da nova administração, ele assinou ordens executivas e decretos que parecem ir na contramão das causas democráticas, humanitárias e ambientais, como as restrições severas aos imigrantes, o perdão para os invasores do parlamento e a retirada dos Estados Unidos do Acordo Climático de Paris, um golpe duro para a preservação ambiental do planeta. Mas as decisões personalistas do presidente terão que passar pelas duas casas legislativas, nas quais ele conta com maioria escassa: dois assentos na Câmara e três no Senado. Medidas mais polêmicas, portanto, poderão ser barradas por parlamentares mais comprometidos com a Constituição do que com posições partidárias. O mesmo pode ocorrer em casos mais complexos que chegarem à Suprema Corte.
Com esta guinada de rumo na política norte-americana e as recentes ameaças de intervenção no Panamá e na Groenlândia, o mundo livre tem motivos para inquietação, mas o histórico da própria democracia no país de Abraham Lincoln e George Washington justifica a esperança de que os limites da soberania popular, do respeito à vontade da maioria e da legislação constitucional não serão ultrapassados.