Uma decisão apressada, descabida e sem suficiente respaldo na legislação nacional adotada por uma juíza da Justiça Federal de Brasília quase resultou em incidente diplomático entre Brasil e Israel. Demandada pela Fundação Hind Rajab, uma ONG pró-palestina e simpatizante dos grupos terroristas Hamas e Hezbollah, a magistrada determinou, no dia 30 de dezembro último, que a Polícia Federal abrisse inquérito para investigar o turista israelense Yuval Vagdani, soldado reservista de 21 anos, pela suspeita de ter cometido crimes de guerra na Faixa de Gaza. O jovem teve que interromper suas férias na Bahia e fugir do país para não passar pelo constrangimento de uma investigação que a própria Polícia Federal reconhece como fora de sua competência.
O incidente diplomático foi evitado, mas o episódio ainda carece de melhor esclarecimento nos meios jurídicos para que tamanho equívoco não volte a se repetir
Tanto que, na última segunda-feira, a PF encaminhou ao Ministério Público Federal um pedido de reconsideração da ordem de investigação, sob o argumento de que inexiste no país uma legislação que tipifique crimes contra a humanidade. Além disso, os policiais alegam desconhecer qualquer condenação do soldado israelense por parte do Tribunal Penal Internacional, criado pelo Estatuto de Roma, do qual o Brasil é signatário.
Na verdade, a instituição que deu origem ao imbróglio foi o famigerado tribunal das redes sociais. Na petição inicial feita à seção judiciária da Bahia, os advogados Maira Pinheiro e Caio Patricio de Almeida, contratados pela Hind Rajab, alegam que o soldado “de maneira sorridente e debochada” documentou sua participação em “crimes de guerra” na rede social Instagram, na qual registrou também sua presença numa ilha do município de Cairu, na Bahia. O plantão judicial baiano considerou que o caso não era de sua alçada e remeteu o processo para Brasília, onde a juíza Raquel Soares Chiarelli emitiu a polêmica ordem de abertura de inquérito.
Perplexa com a decisão e sabendo que os próprios agentes da Polícia Federal consideravam o inquérito inexequível, a embaixada de Israel em Brasília tomou providências para que o soldado saísse do país em segurança. O incidente diplomático foi evitado, mas o episódio ainda carece de melhor esclarecimento nos meios jurídicos para que tamanho equívoco não volte a se repetir.
Em primeiro lugar, o Judiciário brasileiro, em todas as suas instâncias, precisa agir estritamente dentro de sua competência. Enquanto não for criada uma legislação específica, prevalecem precedentes do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Superior Tribunal de Justiça (STJ) assegurando que tratados internacionais, mesmo internalizados, não podem substituir a necessidade de uma lei formal para tipificação dos chamados crimes contra a humanidade. Tal entendimento aponta que, embora o Estatuto de Roma tenha sido ratificado pelo Brasil, seus conceitos não têm aplicação penal direta, devido ao princípio da legalidade, previsto no Artigo 5º da Constituição Federal.
Há ainda outro aspecto a ser considerado no recente episódio: nem o Judiciário nem o governo brasileiro têm suficiente legitimidade para julgar um conflito histórico tão complexo como o que se trava atualmente no Oriente Médio, envolvendo um Estado democrático e um grupo terrorista, com lamentáveis perdas de vidas humanas dos dois lados.