Iná Jost é coordenadora de pesquisa do InternetLab, centro independente de pesquisa interdisciplinar que promove debate e produção de conhecimento em Direito e Tecnologia aplicados à internet. Advogada formada pela UFRJ, tem mestrado em relações internacionais e direitos humanos na Sciences Po, em Paris. Integrou por quatro anos o departamento eleitoral da Organização dos Estados Americanos (OEA), coordenando projetos de cooperação e missões de observação eleitoral nas Américas. Também trabalhou como pesquisadora do laboratório Latinno, iniciativa que mapeia inovação democrática na América Latina, hospedada no centro de pesquisa em ciências sociais WZB, em Berlim.
Qual deve ser o efeito da mudança da política de checagem da Meta?
O assunto é tão grande que é difícil saber por onde começar. A primeira questão é que a Meta vinha, desde 2016 incrementando a política de moderação de conteúdo de modo a desfavorecer discursos de ódio, machistas, misóginos. Vinha em evolução. Havia muita reclamação (sobre essa política) e muito a melhorar, mas se viu diferença. Um exemplo importante foi a política sobre desinformação na área de saúde. Diante da calamidade da pandemia, a Meta mudou para agregar essa política. Não existem dados numéricos sobre o resultado, mas foi importante quando as pessoas achavam que iam virar jacaré tomando vacina.
Tudo isso agora deve desaparecer?
O comunicado fala em simplificação. Na prática, significa a retirada desses filtros criados nos últimos oito anos e mais permissividade em relação a muitos conteúdos. Não acredito que isso seja parte da liberdade de expressão. São discursos violentos que, ao contrário, reduzem a liberdade de expressão de outras pessoas, de grupos minoritários.
De que forma isso pode se manifestar?
A política já mudou e já permite, por exemplo, a equiparação de mulher à propriedade. As políticas das plataformas são genéricas, porque não há como prever todo conteúdo que vai circular. Para demonstrar a aplicação, incluem exemplos que mostram como a moderação deve ser aplicada. Como é um discurso muito violento, estava incluído e foi retirado do exemplo, o que significa que vai ser permitido. Outro exemplo que foi retirado é a equiparação das pessoas trans a "freak", que em inglês é "louco", "surtado". É ainda pior do que equiparar a doença mental, porque é uma palavra muito pejorativa. São duas questões que ilustram para onde o vento vai soprar.
O que já não era bom vai piorar?
Sim, diante dessa mudança muito radical parece que o cenário que tinha antes era ideal, e não era. Os filtros que existiam poderiam ser um problema e censurar de maneira errada, mas sua retirada piora muito. No jargão, a gente fala em "falso positivo", quando um conteúdo é retirado e não deveria, e "falso negativo", quando fica mas é problemático. Acontecia direto. A empresa tem um desafio logístico muito grande, administra uma enxurrada de conteúdo, é um desafio sistêmico. Até parece que a gente vivia em um mundo de fantasia e agora vamos entrar no submundo. Não era assim, mas ao menos existia uma tendência de a empresa colaborar com autoridades locais, contratar checadores locais. A roupagem era mais positiva do que a de hoje.
Antes, a pergunta era "se" chegaria ao Brasil, mas agora é "quando"?
Quando, não se tem ideia. Mas parece estar desenhado para os próximos meses, talvez nos próximos anos. Promete ser uma escalada global, porque a Meta deixou claro que tem interesse em escalar. Mark Zuckerberg colocou como diretor de políticas globais Joel Kaplan, que havia atuado no anterior governo Trump (foi chief of staff, espécie de secretário-executivo com status equivalente ao de ministro no Brasil). Antes, quem ocupava esse cargo era Nick Clegg, um britânico do partido Liberal Democrata (que havia quase desaparecido entre trabalhistas e conservadores, mas recuperou terreno a partir de 2019). Não era nenhum paladino da democracia e do cuidado no discurso, mas ainda assim foi uma mudança de perfil muito radical.
Com a União Europeia (UE) quase isolada na regulação, vai se consolidar o "vale tudo" nas redes?
Não diria que a UE está isolada. A regulação importa e os europeus deram um exemplo dentro de seus parâmetros e contexto. Mas também vejo problema no discurso de trazer o DSA (Digital Services Act, nome da lei da UE aprovada em 2022) para o Brasil. Eles têm história e estrutura regulatória muito diferentes das nossas, trabalham na adequação para cada país com autoridades locais. É um grande exemplo, ao mesmo tempo em que é específico e local. Não é bom endeusar o DSA como o "futuro que nos espera". Até porque está em período probatório. Cada país tem muito o seu contorno.
Qual a chance de regular no Brasil?
O Brasil mostrou que existia forte vento do governo soprando a favor da regulação. Na estrutura do governo, hoje, existe uma Secretaria de Políticas Digitais na Secom (Secretaria de Comunicação), uma de direitos digitais no Ministério da Justiça e até a Fazenda tem uma força-tarefa focada em temas digitais. Mas o Congresso é ruim de roda nesse sentido. Será difícil obter acordo político viável. O lobby das redes é muito forte e o Congresso não está interessado, ou melhor, está interessado em não abordar esse assunto. A União Europeia inspira uma tendência geral, a Unesco tem diretrizes para regulação de plataformas. Mas depende muito dessa articulação com o Congresso.
Se quem só vê às vezes os vídeos de Mark Zuckerberg se surpreendeu, qual a reação da comunidade digital?
Foi um discurso desconcertante, mesmo. Nunca fui checadora, mas conversei com alguns nos últimos dias e entendi que a Meta tinha um programa de checagem era o padrão-ouro em relação a todos os demais. Tem parceiros locais que recebem o conteúdo denunciado, checam e devolvem um link com o conteúdo verificado. Aí a plataforma decide o que fazer, se retira ou não. Mark fez uma confusão deliberada entre moderadores e checadores, deu a ideia de que estão interferindo, o que não é verdade. Quando devolvem o link, perdem o controle do que vai acontecer. A Meta tem um dos primeiros programas de checagem, e o mais consolidado, com muitos parceiros, checadores pagos. É muito chocante para o mundo da checagem de fatos que uma empresa com a maior estrutura tenha extinto o programa. Muita gente dos direitos digitais é cética sobre a checagem porque é trabalho de formiga, não tem escala logística. É até ingênuo achar que vai resolver. Mas era uma parte importante entre as várias ferramentas, melhora o nível do que circula nas plataformas, dá ao usuário o direito de ver o que checaram. O que recebe conteúdo dizendo que Lula morreu depois da queda no banheiro pode receber um link e pode ser que clique. Não tem como assegurar, mas é um direito.
Em audiência no Congresso no ano passado, republicanos foram atuantes na cobrança de regras para redes. Há chance de reação?
Se há um tema que une republicanos e democratas é a política de plataformas para crianças. Em todo o mundo é assim. No Brasil, o único projeto de lei aprovado no Senado, que foi para a Câmara, é de proteção a crianças. Mas os EUA não têm absolutamente nenhuma tradição de regulação de qualquer veículo. A primeira emenda é muito forte no país. O campo do Direito Digital não tem qualquer expectativa de que uma diploma regulatório venha a sair nos EUA. O que pode ter chance é de que, diante desse fato novo, haja pressão para que o Congresso retome discussão legislativa. É um tema muito divisivo, é um pouco cruzar os dedos.
Então, o vale tudo vai prevalecer?
É uma tendência grande. Como consequência de tudo estar muito rápido e conectado, tendemos a ter uma reação extrema. Mas tudo aponta para um cenário muito sombrio. Se comparar o X com o X, basta ver que caiu muito o nível dos conteúdos. É possível que se vejam discursos mais violentos e aumente essa circulação. Também será preciso ver como as políticas serão escalonadas para o Brasil. Cada país não é independente, mas há certa autonomia. Mas o cenário é bem ruim.
O X perdeu relevância depois da compra por Elon Musk. As redes de Zuckerberg correm esse risco?
No micro, é possível que sim. Algumas pessoas podem sair, ou deixar de usar. A gente fica muito vendido. Nossa vida é um efeito do poder econômico que as plataformas têm, inclusive do monopólio. A mesma empresa é dona de um aplicativo de mensagens, de uma plataforma de texto e de outra de conteúdo, além de uma inteligência artificial que responde a temas delicados, sobre política, por exemplo. São muitos serviços que uma mesma empresa domina. O Google, por exemplo, tem até uma camada de infraestrutura, porque é dona de um cabo submarino. No caso do Twitter/X, teve um efeito de choque. O Brasil é um mercado importante e tem usuários muito engajados, mas é difícil ter impacto financeiro grande a ponto de a plataforma rever a mudança. É um mercado em reais, o que reduz seu peso. Diante de moeda mais desvalorizada, fica mais barato. E se comparar com o mercado nos EUA, então...
Como a mudança afetou o campo dos direitos digitais?
Não se pode dizer que foi pego de surpresa, ninguém achava que Mark fosse um democrata, mas a forma surpreendeu. A Meta sempre faz alterações de política, que costumam ser noticiadas por um site mais nichado dos Estados Unidos, depois ganha mais atenção. Desta vez, foi muito particular. Foi anunciado para virar notícia. Fez pronunciamento muito chocante, com linguagem violenta. Ele usou a expressão "get rid of of factcheckers". Isso quer dizer "se livrar". E ainda disse que os checadores contribuíram para censura na plataforma. É um retrocesso escrito e na cara do Mark. Não falo pela comunidade, mas falo por mim quando digo que há um sentimento de total impotência. É uma empresa cujas decisões influenciam na vida de todo mundo, desde a esfera muito íntima até a social, política e cultural. É um espectro muito amplo de influência. É difícil até imaginar as consequências práticas de tanto poder. Mas sim, há reações. A Coalizão Direitos na Rede fez nota de repúdio que já tem apoio de mais de 120 entidades, pedindo para o governo atuar (confira clicando aqui).
Se a decisão da Meta foi provocada pela reeleição de Trump, pode mudar de novo em quatro anos?
Pode mudar, como já mudou nos últimos oito anos. As decisões de política corporativa são sempre muito pautada nas razões econômicas. E esse liberou geral interessa aos cofres das empresas. Como pessoa física, considerando o perfil do CEO da empresa, acho difícil voltar a pasta de dente para o tubo.