
Maria Rita Kehl, amiga e colega psicanalista, sofreu um linchamento virtual por criticar os limites das questões identitárias. Ela defende que há exageros, característicos de nichos narcísicos, em que só eles podem falar de si mesmos. Para os que têm “lugar de fala”, aos outros restaria o “lugar de cale-se”.
A resposta não veio com argumentos, que se espera num debate, mas com um ataque pessoal. Na falta de resposta, ataque a figura do oponente.
O avô da psicanalista foi eugenista no começo do século XX. O argumento é que ela, vindo dessa família, só poderia pensar de uma forma racista. Logo, sua crítica não procede.
Para os linchadores, Rita não é que ela fez pela psicanálise, os livros que escreveu, a militância política que teve. Ela foi reduzida a ser neta de um eugenista.
É esta atitude que vai ajudar a combater o racismo hoje? Cessar o abuso policial contra a população negra? É isso que vai diminuir o número absurdo de mortes de mulheres e da população trans? Ou é para mandá-la ao lugar de cale-se?
Linchamentos servem para exibir-se como bacana. Seus perpetradores garantem para si o sucesso entre outros supostos beatos. Porém, para ser realmente bom, é preciso dialogar com nossas maldades, toda pureza é suspeita. Como diria Chico César, que Deus me proteja da maldade de gente boa e da bondade de pessoas ruins.
Se o sofrimento em si ensinasse algo, a psicanálise seria inútil. A dor, a opressão só geram traumas, não sabedoria. Na prática de escuta, o lugar de fala é do paciente, e assim como na sociedade, ninguém pode supor que realmente entenderá tudo sobre a dor alheia. Empatia é acolher, mesmo sabendo o que o outro está sentindo nos escapa no todo. Na clínica ou na cultura, falar de si propicia elaborações, porém, elas serão eficazes no exercício de escutar-se na presença e em interação com outros, com o diferente. Este era o ponto da Rita.
A vantagem de ficar velho é ver caírem uma sucessão de modismos intelectuais hegemônicos. Será que essa forma de pensar vai longe? Afinal, não faz laço social, faz laço de bolha. Alimenta-se de intrigas virtuais. Quem questiona é desqualificado. Quem discorda de um só ponto é impuro.