Todos defendem, com veemência, o direito à liberdade de cada um, e ninguém contesta porque este é o mais elementar sustentáculo da democracia. O problema é que, tendo de ser, necessariamente, equânime para ser justo, esse direito esbarra no direito do vizinho sempre que ameaçar ou constranger a outrem. Porque, afinal, exercer a cidadania em sociedade significa que todos devem exigir o respeito mútuo.
Nesse sentido, é assustador o índice de brasileiros que se declararam contra a vacina, e nem estou incluindo neste contexto a declaração ambígua do presidente (“Ninguém será obrigado a vacinar!”), porque fosse qual fosse a resposta, ele seria acusado de irresponsável ou de ditador. Era só uma questão de escolha, e ele preferiu ficar com a lei.
A bizarra experiência brasileira do início do século 20 não parece despegar da nossa sina de subdesenvolvimento crônico. As epidemias davam ao Rio de Janeiro, àquela época, a fama de cidade empesteada e mortífera, afastando os estrangeiros, receosos de contrair doenças, especialmente a febre amarela e a varíola. Por outro lado, o planejamento urbano herdado do período colonial e do império não condizia mais com a condição de capital e centro das atividades econômicas do Brasil daquele período. Ela já era linda, mas precisava de um bom banho se sonhasse vir ser maravilhosa.
Que pelo menos se negue atendimento pelo SUS aos que escolherem o vírus como parceria mais amistosa.
No dia 9 de novembro de 1904, foi publicado no jornal A Notícia (Rio de Janeiro) um plano de saneamento da cidade, incluindo a regulamentação da aplicação da vacina obrigatória, liderado pelo Dr. Oswaldo Cruz. O projeto oferecia a opção de vacinação por médico particular, mas o atestado teria de ter firma reconhecida. Além disso, haveria multas aos refratários e se exigiria o atestado de vacinação para matrículas em escolas, acesso a empregos públicos e trabalho nas fábricas, hospedagem em hotéis e casas de cômodo, viagem, casamento e voto.
Para demonstrar que social e politicamente permanecemos irretocavelmente iguais, também há 116 anos houve politização da mídia e ameaças de impeachment – que naquela época não usava essa nomenclatura sofisticada para definir o que era mesmo uma rasteira no governo. Nos cinco dias de revolta contra o que se planejou como a reabilitação sanitária da então capital do Brasil, habilitando-a a receber turistas e operários contratados para a modernização do porto, houve protestos e tiroteios com mortos e feridos. As residências das autoridades envolvidas foram alvejadas e a imprensa considerada governista, sofreu depredações.
Dias depois de decretado o estado de sítio, a obrigatoriedade da vacina foi abolida e a revolta arrefeceu. A contabilidade das mortes decorrentes dessa permissividade do direito de escolha nunca foram publicadas.
Mas como outra vez é lembrado o direito individual, incluindo a patética opção pela doença e a liberdade de infectar seus contemporâneos, que pelo menos se negue atendimento pelo SUS aos que escolherem o vírus como parceria mais amistosa.
Não vejo melhor maneira de tratar tamanha irracionalidade.