
Vai fazer um ano desde que o Rio Grande do Sul viveu a maior tragédia climática da sua história. E como um lembrete sádico de que aqueles que não aprendem com a história estão condenados a repeti-la, Porto Alegre voltou a boiar nesta segunda-feira (31).
A diferença para as chuvas de maio do ano passado é que, dessa vez, estava tudo no radar. A tempestade foi prevista. Anunciada. Esperada. E ainda assim, ninguém conseguiu impedir o caos. O prefeito Sebastião Melo, talvez traumatizado demais com os escombros de maio passado, até tentou mostrar alguma reação. Pediu para as pessoas saírem de casa um pouco mais tarde na manhã de hoje, no melhor estilo “segura aí enquanto a gente passa o rodo rapidinho”. Simpático. E, assim como a chuva, previsível.
No fim do ano passado, em entrevista para a Zero Hora, Melo disse, sem pudor, que “a cidade alagava antes da enchente e seguirá alagando em vários lugares depois”. Um astrólogo da tragédia com previsão garantida, não importa o signo.
Enquanto isso, o Piratini achou prudente começar a planejar a compra de um novo jato para a frota do estado, ao custo de R$ 90 milhões que podem sair do Fundo do Plano Rio Grande, criado para ser utilizado para a reconstrução após a enchente. O governador Eduardo Leite explicou que a solicitação vem da Secretaria de Saúde, e o objetivo da compra é agilizar o transporte de órgãos aptos para transplantes. A ideia é nobre, ninguém discute. Mas é a hora? A origem dos recursos é essa, mesmo? Se o avião — que será multimissão, ou seja, poderá ser usado para qualquer coisa, não só para transplantes — estiver levando o governador até Brasília e aparecer um órgão compatível com um gaúcho da lista de espera, ele vai dar meia-volta?
Leite se defendeu da polêmica dizendo que a compra não é um luxo e que essa discussão sequer faz sentido, já que ele viaja com frequência em aviões de carreira. É verdade. Eu mesmo já esbarrei no governador mais de uma vez em voos de Porto Alegre para São Paulo. Mas a celeuma não é essa. É preciso mais sensibilidade com a população. O Rio Grande não se recuperou da tragédia do ano passado e uma nova leva de tempestades se anuncia para este ano.
Aqui em São Paulo, choveu também. Tempestade previsível, forte, destrutiva. A cidade virou um grande lago marrom, como sempre — sem o privilégio do pôr do sol no Guaíba. Mas aqui, nem entrevista, nem pedido de paciência. O prefeito Ricardo Nunes optou pela tática do modo avião. Silêncio absoluto. Sua última postagem no “X” foi no dia 3 de março. Desde então, nenhum “força, pessoal”, nenhum “estamos trabalhando”. Nem um “me pegou de surpresa”. Nada. O prefeito, aparentemente, se solidarizou com as enchentes ficando inundado de silêncio.
É curioso observar como nossos governantes tratam o previsível como se fosse uma surpresa do destino. Uma pegadinha meteorológica. A população, essa sim, continua com os dois pés na lama. Literalmente. Esperando não só ações, mas também atitudes. Porque quando até o básico — como reconhecer que o problema existe e não vai sumir com nota de rodapé — vira luxo, algo está muito errado.
E antes que me acusem de estar sendo duro demais, vale lembrar que todas as pessoas mencionadas neste texto foram reeleitas. Os cidadãos apertaram o botão da urna e disseram: “vai lá, confio em você de novo”.
Quem sabe, com sorte, o avião chegue rápido. E que sirva, sim, para salvar vidas — porque isso, afinal, ainda é o que mais importa. Só seria bom que, além de transportar órgãos, ele também carregasse um pouco de consciência, sensibilidade e senso de urgência para quem está no comando. Porque diante do que está por vir — e do que já está acontecendo — não dá mais pra governar com os pés fora d’água.
A gente não espera milagres. Só espera que, da próxima vez que chover, o plano não seja apenas esperar passar.