Jardel Galiotto tinha 11 anos e um sonho quando o conheci, há nove anos, em meados de 2008. Queria ser jogador de futebol. Sua família era acolhedora como são as famílias italianas da Serra. Os pais viviam do cultivo de morangos e alho em um minifúndio na zona rural de Otávio Rocha.
Na casa dos Galiotto, quem acordasse às 9h era um grande preguiçoso. Além do trabalho diário que só tem hora para começar, três vezes por semana, ao raiar do sol, o pai madrugava para dirigir o caminhão estufado de moranguinhos até a Ceasa, em Porto Alegre. A mãe se levantava no mesmo horário, para preparar o café. Todos os dias, Jardel pedalava cinco quilômetros para estudar. Acordava por volta das 7h e tomava o caminho da escola municipal Francisco Zillio.
Estava acostumado. Fazia o mesmo percurso para treinar como zagueiro na escolinha da cidade. Só da estrada de asfalto até os primeiros latidos de Xuxa, a cadela de estimação que lhe fazia companhia no debulho do alho em casa, era preciso vencer 500 metros de lomba e chão batido. O cenário, vale dizer, compensava: parreirais a perder de vista, plantações de abóbora, extensas áreas verdes, o som da água corrente do riacho.
Acompanhei Jardel quase que diariamente durante meses, para um reportagem de ZH. A meta era sentir e entender como se dá o turbilhão de emoções de um menino brasileiro que alimenta o sonho de ser jogador, com todo o peso _ e pressão, fundamentalmente _ disso em um país no qual o esporte é uma religião. Fui à escola com ele, testemunhei colheitas de moranguinho, assisti a treinos, olhei a mala sendo feita antes da vinda a Porto Alegre, tomei café com os Galiotto, viajamos juntos de ônibus.
Quando o ex-jogador Daniel Franco comunicou a aprovação numa peneira em Flores da Cunha, lá estava eu no meio do gramado, observando cada reação. Seus olhos de gremista _ o nome não é obra do acaso _ brilharam. Os testes seriam no Inter, mas e daí? Nos dias de seleção, o nariz do menino emotivo e tímido, acostumado à solidão da zona rural, trancou e até uma alergia eclodiu na pele. Logo na primeira bola, um menino o chamou de debiloide.
Era a guerra insana por espaço entre crianças de realidades díspares de todo o Brasil. Jardel travou. Foi reprovado, apesar de ter futuro, segundo me garantia Daniel Franco.
Estendi-me na história de Jardel, que depois chegou a treinar na base do Juventude, a propósito de Manu, a joia reluzente gremista. São histórias diferentes, mas unidas pelo fato de serem apenas crianças.
Emanuel Ferreira, 10 anos, virou objeto de uma acusação de aliciamento feita pelo Grêmio contra o Barcelona. Que, vale dizer, nega tudo. Não entro no mérito do que de fato aconteceu. O futebol é puro interesse por um motivo: dinheiro. Há práticas lícitas e ilícitas, éticas ou antiéticas para diferenciar este e aquele, mas o centro de tudo é o interesse.
Um empresário levou Manu para lá pensando em enriquecimento rápido?
O Barcelona, que obviamente jamais confirmaria nada, até porque seria reincidente, deu uma de João Sem Braço e recuou diante da ofensiva do Grêmio? Ou, de fato, só o recebeu para mera recreação mediante autorização e não quer saber dele? O pai deixou tudo correr para valorizar o filho extraclasse, que já ergue taças no Grêmio e no futsal do Petrópole com a bola colada no pé?
Ou concluiu que, na pior das hipóteses, é melhor o filho crescer na Espanha, mesmo que não vire jogador, do que correr o risco diário de ser assaltado e morto em Porto Alegre, portanto pensando em seu futuro (pensei muito nessa hipótese ao acompanhar o noticiário)? O Grêmio só vê milhões de euros lá na frente e trata Manu como se fosse propriedade sua, embora não tenha esse direito? Ou quer defendê-lo do canibalismo do futebol e bloquear práticas de aliciamento?
Essa história toda ainda vai render.
Talvez tudo não passe de um grande mal-entendido em tempos de mídias rápidas. Mas há um fato assustador, e talvez o fato de Messi ter saído imberbe do Newell's Old Boys, da Argentina, para se desenvolver no Barça, incentive a lógica do quanto mais precoce, melhor. Estamos falando de crianças. Os clubes, de maneira geral, antecipam o momento de lidar com pressão, aprender questões táticas em vez do lado lúdico e incutir a lógica da competição com obsessão na vitória.
Tem de haver limites. Há deformações. Alguém aí lembra aquela final do Gauchão sub-14, há três anos, que terminou numa delegacia de Alvorada? Uma briga generalizada teve início aos 30 minutos do primeiro tempo e foi impossível retomar o jogo tal o grau de ódio e violência entre pré-adolescentes. E as faltas vergonhosas inventadas pelos adultos, simulando mentiras para enganar os árbitros: não tinham de ser combatidas na fase de formação?
É o interesse, antes da pessoa. Vencer e vencer. A qualquer custo. Uma derrota pode causar o emprego daquele técnico da base que, por sua vez, é cobrado para entregar jogadores prontos o quanto antes, de modo a permitir que o clube assine logo o primeiro contrato. E o clube cobra para se proteger do canibalismo europeu e dos empresários mal intencionados.
Cada parte do processo têm seus motivos. Algo está errado no processo. Os clubes brasileiros, famosos pela desunião congênita, precisam levar isso a sério, para além apenas dos limites de idade previstos em lei: 14 para ser atleta em formação com vínculo e 16 para assinar contrato profissional. Ou, então, que a Justiça ou até o Estado entrem em campo para mediar.
Estamos virando o fio.
Criança tem de brincar.
Bola meia de bola gude, antes de tudo e mais nada.