
No primeiro governo Trump, livros como 1984 (1949), de George Orwell, e O Conto da Aia (1985), de Margaret Atwood, voltaram a frequentar a lista dos mais vendidos. Os dois romances imaginam futuros distópicos em que nada é sequer parecido com uma democracia. Quando a extrema direita desembarcou na Casa Branca, em 2017, a maioria ainda acreditava que a Constituição, os pesos e contrapesos da democracia, a sociedade civil, a opinião pública, e talvez até mesmo a sorte, fossem capazes de conter o apetite para a destruição do bilionário imprevisível que havia chegado ao poder. Orwell e Atwood mostram o que acontece quando nada disso funciona como deveria.
No período da pandemia, foi a A Peste (1947), de Albert Camus, que voltou às cabeceiras. É provável que Camus não estivesse tão preocupado assim com uma epidemia de verdade, e a ideia de uma cidade sitiada por inimigos invisíveis fosse, na verdade, uma grande metáfora para a ocupação nazista da França durante a II Guerra, mas, vai entender, parecia que ele havia escrito para nós, os leitores pandêmicos do futuro.
Em 2025, um livro que teria virado cinzas se o desejo do autor tivesse sido respeitado também parece ter sido escrito para nós. Como A Peste e boa parte das obras que sobrevivem ao teste da posteridade, O Processo (1925), de Franz Kafka, permite múltiplas interpretações. Na verdade, poucos livros foram esmiuçados por tantos críticos de vertentes diferentes. Pode-se ler esse romance póstumo, ainda hoje, pelo viés psicanalítico, social, político, étnico e até mesmo místico/religioso: um homem é acusado de um crime que ele não sabe qual é por pessoas que ele não sabe quem são.
Em O Processo, tudo parece normal na superfície. K. tem um bom emprego, é respeitado pelos colegas, pela família e pela dona da pensão onde mora, obedece as leis, tem ambições. Talvez por isso demore tanto a perceber que alguma coisa está fora da ordem. O que exaspera os leitores, quase tanto quanto o colapso da lógica e o caos que se instala na vida de um cidadão comum da noite para o dia, é a dificuldade do protagonista para entender que as regras que ele obedecia até então já não valem mais.
Sem saber o que fazer, K. apenas segue adiante, em meio a uma legião de atônitos como ele. Já não se trata de imaginar um futuro incerto, mas de sobreviver a um presente caótico.