
Duas fés, duas canções. Gilberto Gil compôs Se Eu Quiser Falar com Deus atendendo a uma encomenda do supercatólico Roberto Carlos, que havia arrombado a festa 10 anos antes, em 1970, com o hit Jesus Cristo. Gil deve ter imaginado que o cantor talvez se interessasse em voltar ao tema da fé e escreveu para ele uma das mais belas canções da música popular brasileira. Mas Roberto não curtiu. Não era daquele jeito que o Rei falava com Deus.
Elis, por sua vez, não perdeu tempo. Antes que o próprio Gil gravasse sua composição no álbum Luar (1981), a cantora lançou um compacto com uma interpretação nada menos do que sublime da canção. Mas a história não terminou ali. Em 1995, Roberto decidiu gravar uma espécie de resposta à música de Gilberto Gil, intitulada Quando Eu Quero Falar com Deus.
Roberto: “Deus nos ouve, nos mostra o caminho que a ele conduz / Deus é pai, Deus é luz”.
Gil: “Se eu quiser falar com Deus / Tenho que me aventurar / Tenho que subir aos céus / Sem cordas pra segurar”.
Instalada há algumas décadas no estreito nicho dos 5% de brasileiros que afirmam não acreditar em Deus, não me cabe discutir a crença e suas múltiplas manifestações. Com relação à religião, meu único dever moral é lutar para que cada um tenha (ou não tenha) a sua — e que o Estado se mantenha laico para garantir a felicidade de todo mundo. Mas a fé dos outros, às vezes, me comove. Quem já visitou uma catedral, ouve música sacra ou é fã de algum escritor profundamente religioso sabe que é possível apreender a transcendência espiritual alheia, de forma indireta, através da arte. O milagre que faz da canção de Gilberto Gil uma obra-prima e relega a de Roberto ao esquecimento tem nome: chama-se poesia.
O hino Deus Cuida de Mim, do pastor Kleber Lucas, interpretado por Caetano no show em Porto Alegre, não alcançou, entre nós, a graça da transcendência. Porque o público de Caetano não acredita em Deus? Porque tem preconceito contra os evangélicos? Cada um saiu da Arena com sua própria teoria para explicar a ensurdecedora economia de aplausos. Meu palpite: Caetano poderia cantar para todos os deuses e todos os santos de todas as confissões, e seu público ainda assim aprovaria. Desde que 1) a canção fosse bonita e 2) letra e música estivessem em sintonia com o legado, a sensibilidade e até mesmo a religiosidade de Caetano Veloso. Como o público não ouviu nada disso, Deus Cuida de Mim soou apenas deslocada. E populista.