
A história da literatura é cheia de mulheres que dedicaram boa parte de suas vidas à obra dos conjes. Sofia Tolstoi copiava e editava os manuscritos do marido, decifrando seus garranchos e dando opiniões sobre o andamento da trama. Vera Nabokov, além de datilografar, editar e traduzir, administrava as contas da família e até dava aulas no lugar do escritor quando ele estava ocupado com outras coisas. Dan Brown, autor de O Código da Vinci, admitiu que a ex-mulher, Blythe, deu uma mãozinha mais do que circunstancial na redação de alguns de seus best-sellers. Não terá sido o único a aproveitar o talento que tinha em casa sem conceder o devido crédito no momento certo.
Excluída a intimidade conjugal, Céleste Albaret filia-se à longa tradição de mulheres invisíveis por trás de uma obra-prima escrita por um homem incapaz de conciliar a literatura com as demandas práticas do dia a dia. Aos 22 anos, em 1914, recém-casada e sem muita experiência na cozinha ou nos afazeres domésticos, a jovem ingênua e provinciana começou a trabalhar na casa do cosmopolita e maniático Marcel Proust. Deu liga.
O primeiro volume de Em Busca do Tempo Perdido tinha acabado de sair, e Proust estava iniciando o período mais recluso, e também mais produtivo, de sua vida. Céleste rapidamente passou de ajudante eventual a secretária, governanta e companhia permanente, velando por sua saúde frágil, aturando suas manias e propondo o método de corte e recorte de emendas que tornaria menos caóticas as inúmeras correções que o escritor fazia em seus manuscritos antes de entregá-los ao editor. Quando Proust morreu, em 1922, pouco depois de colocar o ponto final nas 3 mil páginas do seu romance, Céleste estava ao seu lado.
Com texto e lindas ilustrações de Chloé Cruchaudet, a HQ Céleste e Proust (Nemo, R$ 132,90, 236 páginas), lançada há pouco no Brasil, é um biscoito fino capaz de agradar tanto quem não costuma ler quadrinhos quanto quem nunca leu Proust, tratando a mais famosa relação entre patrão e criada da literatura mundial com delicadeza e bom humor. A França, ao contrário do Brasil, não cultiva o mito da empregada que é “quase da família”. A distância social entre Céleste e Proust é mostrada no álbum de forma franca, sem romantização. Ainda assim, a convivência dos dois parece ter criado uma ponte entre dois mundos que não apenas mudou suas vidas para sempre, como tornou possível o maior romance do século 20.