
Está disponível na Netflix um filmaço que apresenta uma versão ficcional da renúncia de Bento VXI (1927-2022) e da ascensão do papa Francisco, cuja morte, aos 88 anos, foi anunciada nesta segunda-feira (21) pelo Vaticano: Dois Papas (The Two Popes, 2019), dirigido pelo brasileiro Fernando Meirelles, de Cidade de Deus (2002).
O filme concorreu em três categorias do Oscar: melhor ator (Jonathan Pryce), ator coadjuvante (Anthony Hopkins) e roteiro adaptado (Anthony McCarten). Também recebeu quatro indicações ao Globo de Ouro e cinco ao Bafta, da Academia Britânica.
Por coincidência, os dois atores que estrelam Dois Papas nasceram no País de Gales, nação integrante do Reino Unido. Beneficiado pela semelhança física, Jonathan Pryce, hoje com 77 anos, encarna o argentino Jorge Bergoglio, o papa Francisco. Anthony Hopkins, que tem 87 anos, vive o alemão Joseph Ratzinger, o Bento XVI.

A história dessa ficção baseada em fatos reais começa na eleição de Ratzinger ao cargo máximo da Igreja Católica, em 2005, após a morte de João Paulo II. De partida, Fernando Meirelles retrata as diferenças entre o argentino e o alemão.
Bergoglio é o jesuíta humilde. Parece seguir uma máxima de Platão relembrada por um colega de Vaticano e evocada na ficção Conclave (2024): "A maior qualidade para ser um líder é não querer ser um líder"). Também é um religioso terreno: chega a assobiar a popular canção Dancing Queen, do Abba.

Ratzinger é ambicioso (ele quer, muito, ser o Papa), litúrgico (lamenta, com ironia, que, quando precisar dar notícias ruins, o faz em latim, "pois apenas 20% do Vaticano vai entender") e bastante conservador quanto aos costumes.
— Uma igreja que se casa com sua era ficará viúva na próxima — diz o alemão.
— Nada é estático na natureza, nem mesmo Deus — rebate o argentino.

Os dois religiosos se odeiam, mas, positivamente, isso é tratado com senso de humor pelo filme (faz lembrar de comédias como Dois Velhos Rabugentos, com Jack Lemmon e Walter Matthau). O conflito mesmo é estabelecido quando Bento, em 2012, em meio ao escândalo do vazamento de documentos confidenciais do papa e meses antes de sua surpreendente renúncia, convoca o cardeal para uma conversa a sós.
Esse encontro ocorreu de verdade, no entanto, os diálogos que testemunhamos são fruto da imaginação do roteirista McCarten, autor do script de A Teoria de Tudo e coautor de O Destino de uma Nação, ambos indicados ao Oscar e igualmente inspirados em personagens reais — respectivamente, Stephen Hawking e Winston Churchill.
Ratzinger e Bergoglio travam um envolvente debate — mas acabam, também, se aproximando. Discutem, entre outros assuntos, o presente e o futuro da Igreja Católica, a omissão do Vaticano diante dos casos de padres pedófilos (um tema abordado com excesso de polidez, assim como ocorre com as contradições de Francisco quanto à homossexualidade) e o papel dos jesuítas durante a ditadura militar na Argentina.
Em flashbacks nos quais é interpretado pelo ator Juan Minujín, Bergoglio faz uma autocrítica. Que acaba sendo fundamental para sua transformação espiritual no Francisco que conhecemos, o humanista para quem a comunhão "não deve ser prêmio para os virtuosos, mas alimento para os famintos", o cardeal que peitou o Papa e, por extensão, muitos políticos mundo afora ao perguntar:
— Jesus construiu muros?
Aliás, eis uma das virtudes de Dois Papas: transcende a religião, permitindo leituras variadas. Para além de um duelo entre duas vertentes ideológicas na Igreja Católica, pode ser visto como um choque entre o velho e o novo, entre a Europa e a América do Sul, entre as convicções pessoais e o olhar para a coletividade, entre o compromisso com a imagem e a simplicidade da verdade. A Francisco, quando entronizado, não interessa vestir os ornamentos de Papa: palavras e atitudes — como a capacidade de dialogar com quem pensa diferente — reluzem mais do que joias e sapatos vermelhos.
É assinante mas ainda não recebe a minha carta semanal exclusiva? Clique AQUI e se inscreva na minha newsletter.
Já conhece o canal da coluna no WhatsApp? Clique aqui: gzh.rs/CanalTiciano