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No podcast mais cheio de vidas da temporada, todas as vozes vêm do além. Quem morreu há menos tempo já anda estudando a geologia dos campos santos com Machado desde 2022. Conforme a expressão criada pela Académie Française para designar seus luminares (adotada, mais de 200 anos depois, também pela Academia Brasileira de Letras), todos os entrevistados são imortais. Nada mais natural que eles se disponham a abandonar a modorra da eternidade por alguns minutos para me contar histórias enquanto lavo louça ou faço uma caminhada.
A ideia é tão boa que não dá para entender por que não foi posta em prática antes. Desde 1986, todos os novos membros da ABL gravam um depoimento para os arquivos da instituição. Parte desse acervo vem a público agora no podcast Conversas Imortais. A estreia foi em outubro com Lygia Fagundes Telles. O último programa, dedicado a Zélia Gattai, saiu na semana passada. Com apresentação da imortal e vivíssima Rosiska Darcy, os 12 episódios estão disponíveis no site da ABL, no Youtube e nas plataformas de áudio.
Mesmo os circunspectos João Cabral, Sérgio Paulo Rouanet, Antônio Houaiss e José Mindlin se empolgam quando narram histórias de infância e juventude ou relembram algum episódio extraordinário que viveram. Mindlin, por exemplo, conta que o navio em que ele e a família viajavam para os Estados Unidos, em 1914, foi interceptado por um cruzador alemão, esvaziado e afundado logo em seguida. Cleonice Berardinelli, Carlos Heitor Cony, Ferreira Gullar, João Ubaldo e Zélia Gattai parecem especialmente hábeis na fabulação sobre a própria vida. Cony lembra como superou a gagueira e desistiu de ser padre. João Ubaldo fala do medo de ser o autor de um único livro. Zélia canta.
Das nove mulheres eleitas para a ABL nos últimos 127 anos, quatro estão no podcast, incluindo a pioneira Rachel de Queiroz. Metade dos entrevistados nasceu nos anos 1910, e a outra divide-se entre as gerações de 1920, 1930 e 1940. A lista inclui um médico, um empresário e três diplomatas, além de professores universitários e jornalistas, todos brancos e oriundos das classes média e alta. O objetivo não era exatamente esse (ou apenas esse), mas Conversas Imortais acaba revelando o perfil social, econômico e até mesmo político não apenas dos membros da ABL, mas de boa parte da elite intelectual do país que lê 3,96 livros por ano.